Um resumo da História Romana


"Quem ama, agirá bem. Quem não sabe amar perecerá. Quem proíbe o amor perecerá duas vezes." (Rabiscado numa parede em Pompéia, antes de ter sido destruída a cidade em
79 da nossa era.)

Levar a cabo a dominação do mundo é árduo, mantê-la mais arduo ainda. Os romanos haviam-se tomado senhores do mundo, mas chegou um dia em que êsse domínio lhes escapou das mãos como escapara de todos os outros impérios mundiais da história. É evidente que nenhum país ou povo pode gover­nar eternamente, mas seu espírito e sua cultura podem sobreviver naqueles que lhe sucedem no poder.

Antes de Roma, o palco da história mundial erguia-se no Oriente; Roma mudou-o para o norte e para o oeste. Nem Babilônia nem Tebas, nem a fortaleza montanhosa hitita Hattusas, nem Esparta e Atenas, nem . Alexandre nem Cartago governaram todo o Mediterrâneo e unificaram o mundo ocidental. A única cidade que conseguiu isso foi Roma, a Cidade Eterna. Nenhuma outra cidade foi mais resistente ou irradiou mais energia do que êsse antigo centro de cultura ocidental ­incluindo-se Cnossos, Atenas, Bizâncio, Milão, Aachen e Viena. Roma é a mais antiga capital do Ocidente e permaneceu como metrópole espiritual até hoje. Roma arrastou quase tôda a Europa para sua órbita espiritual e foi ela que civilizou o nosso próprio mundo ocidental.

Após as guerras púnicas, todo o Oriente falava de uma pode­rosa Republica do Ocidente, onde ninguém usava coroa. Algo aparecera que nunca existira antes: uma Republica que domi­nava o mundo conhecido.

Citemos o historiador romano Tito Lívio, contemporâneo de Cristo, ao evocar admiravelmente o tempo da República: “Nunca houvera um Estado maior, ou mais rico, em honras e homens de conduta exemplar. Nunca houvera uma cidade que vivesse por tanto tempo em harmonia e integridade, antes que a cobiça e o esbanjamento a minassem. Nunca houvera um lugar onde a pobreza e a frugalidade fôssem tão altamente estimadas e tão duradouras. Tanto menos o povo possuía, quanto menos cobiçava. Mas não faz muito tempo que a riqueza gerou entre nós a avareza e o desejo do luxo e satis­fação de tôdas as formas de sensualidade, de opulência e devassidão, destruiu tudo e todos."

Foi breve a idade de ouro da República. Irromperam insurrei­ções de escravos e sangrentas guerras civis. Tibério e Caio Graco estiveram bem avançados ao seu tempo, na luta por um mundo melhor. Viviam e trabalhavam em favor dos cam­poneses, das classes inferiores da Itália e morreram vítimas de seus ideais. Quando Cornélia, mãe dos Gracos, falava de seus filhos, não derramava lágrimas; contava o que haviam êles realizado como se isso houvesse acontecido em alguma idade pré-histórica. Criou onze filhos, tendo todos êles morrido antes dela. Foi a primeira mulher a quem Roma erigiu um monu­mento para honrar-lhe o luto.

Mas depois, inevitavelmente, chegou o dia em que um romano vestiu a túnica purpúrea e cingiu a coroa: Júlio Cesar, que transformou a República moribunda em monarquia. Suas lon­gínquas campanhas mantiveram-no tão ocupado que, entre 49 e 44 antes de J. C. não estêve em sua capital mais de quinze meses em seguida. Nesses curtos intervalos de sua fulminante carreira estabeleceu o destino de sua própria época e, pode-se dizer, do futuro. A civilização ocidental herdou de César inúmeras idéias a respeito de administração, governo e lei. Nosso vocabulário deve-lhe o nome do mês de julho e foi êle quem introduziu o moderno calendário.

Até certo ponto pode-se dizer que César conseguiu amalgamar efetivamente os conceitos antagônicos de democracia livre e absolutismo. Mas a época dos imperadores que lhe sucederam mostrou que fogo e água não se misturam. Ordenara César que sua própria estátua fôsse erecta junto das dos sete antigos reis sôbre o Monte Capitólio e quando aparecia em público usava as vestes dos antigos reis de Alba Longa. Mas o próprio título de rei achava-se estigmatizado pelo despotismo e tirania de numerosos governantes orientais e como César estivesse decidido a exercer os poderes de um rei, preferiu fazê-lo sob diferente denominação. A 9 de fevereiro de 44 antes de J. c., foi nomeado ditador perpétuo. Politicamente falando, correspondia isso realmente a ser rei, embora se evitasse a desacre­ditada palavra.

Antes de César, nenhuma pessoa viva jamais tivera seu perfil gravado em qualquer moeda; César quebrou essa praxe. Nos derradeiros anos de sua vida, pensava o povo ser tão importante morar perto dêle que os aluguéis no quarteirão onde vivia César subiram a preços vertiginosos. Não o tivessem assassi­nado a 15 de março de 44 antes de J. C., ter-se-ia fortificado a unificação espiritual do Ocidente. Tal como aconteceu, a prematura morte de César dividiu o Ocidente pela metade: uma parte ocidental e outra oriental.

Foi Otaviano Augusto quem iniciou a era dos imperadores romanos. Depois de Filipe II da Macedônia, foi Augusto provavelmente o maior estadista da Antiguidade e um gover­nante bem mais sábio que César, embora êste haja sido talvez um gênio maior. Mas sem a genuína brandura dêsse homem que protegeu a liberdade e a prosperidade, sem êsse extraor­dinário monarca que governou o mundo conhecido durante quarenta e quatro anos, a era imperial romana não teria podido durar tantos anos.

Com o reinado de liberdade de Augusto, atingiu Roma as maiores alturas da política. Sob Augusto o espírito e a energia criadora de Roma alcançaram o apogeu. Soavam ainda aos ouvidos do povo as queixas e acusações da incomparável ora­tória de Cícero que, antes de ser assassinado em 43 antes de J. c., enchera de grandeza a língua latina. Foi êsse o tempo do poeta Ovídio, autêntico filho da grande cidade, com uma quase sobrenatural consciência de seus próprios dons, o homem que escreveu as grandes "Metamorfoses", quinze volumes compostos em hexâmetros. Foi o tempo em que Horácio, velho solteirão, cantava o amor e o vinho, a grandeza de Roma e a real natureza. Foi o tempo em que o tímido Virgílio recitou diante de Augusto e de Otávia sete livros da sua "Eneida", a maior epopéia nacional de Roma, que, de acôrdo com os desejos do poeta, deveria ser queimada por ocasião de sua morte, mas que Augusto salvou das chamas. Foi o tempo em que o historiador Tito Lívio escreveu a sua obra monumental, composta de cento e quarenta e dois livros dos quais só restam trinta e cinco. O sensível Catulo de Verona tinha, antes dessa era, exposto seu palpitante coração à radiantemente bela mas levianamente desacreditada Lésbia, criando assim os mais belos versos de amor em língua latina. E mais tarde o filósofo Sêneca tentou ensinar algo de sua própria sabedoria a Nero, o "enfant-terrible" de Roma.

Na tarde de 19 de agôsto de 14 depois de Cristo, morria Augusto, com setenta e seis anos de idade, nos braços de sua espôsa. "Se desempenhei bem o meu papel - disse êle, ­então me aplaudam". E na sua agonia final murmurou: "Lívia, pense no nosso feliz casamento...e adeus”. Haviam terminado para Roma uns cinqüenta anos de estabilidade e esplendor ininterruptos.

Embora se contem algumas personalidades dignas e extraordi­nárias entre os imperadores romanos, governaram a cidade também algumas figuras verdadeiramente aterrorizantes. Pela história de Roma passaram governantes dos mais variados tem­peramentos e caracteres: maníacos sedentos de sangue, cantores e dançarinos irresponsáveis, guerreiros geniais e destemidos, filósofos e organizadores de primeira magnitude. O velho Tibério, que passou grande parte de seu remado no seu palácio da ilha de Capri, era mais um fantasma cruel que um ser humano. Tinha mais mêdo dos indivíduos do que das multidões e os processos de suas vítimas, consignados nas obras históricas de Tácito, acusam-no até hoje. Como um ladrão êle, o impe­rador, safava-se sorrateiramente de sua ilha até os muros de Roma para ouvir o que o povo andava murmurando pela cidade.

O Imperador Calígula costumava percorrer as prisões de sua metrópole para escolher pessoalmente os prisioneiros que deveriam ser lançados às feras no circo. O imperador Cláudio gostava de desempenhar o papel de juiz e também ordenava execuções, mas muitas vêzes não podia lembrar-se de quem mandara matar. Um dia, depois que sua espôsa Messalina foi morta, perguntou distraidamente: "Por que a imperatriz não aparece à mesa?" E muitas vêzes homens executados por sua ordem eram convocados por êle a conselho ou para jogar damas. Uma vez que, como era natural, não podiam mais apa­recer, mandava mensageiros dizer-lhes que eram incuráveis mandriões. Nero - ator, cantor, piromaníaco, perseguidor de cristãos e, a despeito de tudo isso, verdadeiro poeta - era ruivo, de pescoço curto e extremamente míope. Foi êle quem mandou construir a maior casa de Roma, a famosa Casa Dou­rada, cujas abóbadas têm sido escavadas e podem ser visitadas em nossos dias.

Mas às vêzes governaram o mundo romano figuras nobres e magnânimas como o Imperador Tito, que parece na verdade um sol no escuro do firmamento da história imperial de Roma. Jamais deixou de preocupar-se com o seu vasto império e com o bem estar de seu povo. Infelizmente, durante seu rei­nado, ocorreu uma erupção do vulcão Vesúvio, em 79 depois de Cristo, reduzindo a cinzas Pompéia, Herculano e Estabia. Seguiu-se a êsse cataclisma devastadora peste e, por fim, uma conflagração na própria Roma.

Bondoso e frugal, porém não mais do que isso, foi o Imperador Nerva, ao passo que Trajano pode ser considerado como uma das mais impressionantes personalidades da história romana. Construiu O magnífico Forum Imperial, os portos de Ancona, óstia e Civitavecchia e lançou poderosas pontes sôbre o Da­núbio a fim de que as legiões romanas pudessem atravessá-lo fàcilmente para manter submissas as hostis tribos da Dácia. Na África, fundou a cidade de Tamugadi (Timgad), cujas ruínas tem Sido preservadas no deserto arenoso. Construiu uma estrada através dos Pl1ntanos Pontinos, bem como fortalezas e travessias de rio na Germl1nia. Sob seu governo, completou o Império Romano sua maior extensão: estendia-se de Portugal e Marrocos, atravessando o Eufrates e o Tigre até as fronteiras da Pártia; da Grécia até bem dentro do deserto do Saara e mais além da primeira catarata do Nilo, no Egito. Quem viajasse dentro dos limites dêsse antigo império - através da Europa, da Ásia e da África - e visse os aquedutos, os canais, termas e anfiteatros, casas e palácios, mercados, portas, mura­lhas, torres e fortalezas, que os romanos construíam em tôda parte onde chegassem, não deixaria de ficar maravilhado de que tal cidade relativamente pequena pudesse ter tido tão vasta influencia. Na verdade foi Trajano "O Melhor" ou optimus, como o chamou o Senado romano.

Adriano, grecófilo e príncipe de paz, foi outro imperador que imortalizou seu nome com magníficas construções. Tecnicamente, talvez uma das mais perfeitas estruturas da arquitetura mundial seja o Parténon Romano, o templo de todos os deuses, conservado até hoje. O vestíbulo circular no seu centro é uma uma das salas mais majestosas e inspiradoras jamais concebidas e nenhuma descrição pode fazer justiça à sua simétrica beleza. Sob Adriano, o templo do Júpiter Olímpico em Atenas, cuja construção durara seiscentos anos, completou-se. E para si mesmo, construiu êle magnífica vila perto de Tibur, a mo­derna Tivoli. Até mesmo os traçados térreos revelam a ele­gl1ncia dêsse palácio. E finalmente Adriano erigiu seu próprio túmulo, o mais colossal mausoléu do mundo romano. Tão sólida a sua construção que, durante séculos, serviu como inexpugnável bastião. Hoje é a Fortaleza de Santo Ângelo. Frugal e modesto, Antonino Pio sempre lutou por preservar a paz, e, se não tivesse êsse mesmo imperador levantado um protesto contra a honraria que lhe queriam prestar, nossos meses de setembro e outubro seriam agora conhecidos como Antonino e Faustino, de seu nome e do de sua mulher Faustina.

Nas longas e solitárias noites, durante suas campanhas contra os marcomanos e outras tribos da Boêmia e da Áustria, Marco Aurélio, talvez o mais verdadeiramente ilustrado de todos os imperadores romanos, andava sempre às voltas com um problema: "Como pode o homem alcançar a paz de espírito?" Deixou-nos um belo livro sôbre o assunto, conhecido como suas "Meditações", trazendo o título de "Para si mesmo". E sob Septímio Severo, gozou o norte da África de um floresci­mento sem precedentes. Descendia o próprio Severo dos nave­gadores fenícios semitas. Era púnico, falava latim com sotaque punico e fêz Cartago tornar-se mais uma vez uma metrópole. Na Ásia Menor mandou mesmo erigir um monumento em honra de Aníbal.

Depois, de novo, governou o império romano um depravado megalomaníaco, o fratricida Caracala. Virtuoso e íntegro, porém, foi Alexandre Severo, amado por todos; figura modelar, sempre, segundo a opinião geral, obedeceu à sua mãe, com a qual veio a ser por fim assassinado. Da cidade do deserto, Palmira, trouxe Aureliano a famosa Rainha Zenóbia a Roma, em triunfo, com correntes de ouro e como parte de seu despojo de guerra. Diocleciano, o maior gênio organizador da antiguidade, construiu um palácio em Salona (a moderna Split, na Iugoslávia), tão vasto que durante a Idade Média edificou-se uma cidade inteira dentro dêle. Mas coube a Constantino tornar-se o primeiro imperador cristão do mundo. Gente tanto do Oriente como do Ocidente sentia-se magneticamente atraída para Roma, a cidade de foros, arcadas de már­more e basílicas, de gigantescos anfiteatros, de circos, com vinte e oito bibliotecas, três teatros, trinta e sete pórticos, onze vastas termas, oitocentas e cinqüenta e seis banhos, dois capi­tólios e dois mercados, oito largas praças, a cidade de jogos e diversões permanentes, a cidade onde os escândalos brotavam como cogumelos e os imperadores tinham muitas vêzes morte violenta. No Monte Palatino, a oeste do Forum e perto do Tibre, jaz a parte residencial onde viviam com esplendor _ as famílias ricas. Mas não podemos mais ver essas construções porque se encontram sob o palácio edificado pelo Imperador Domiciano. Somente a casa de Livia, a mulher de Augusto, foi em parte conservada, identificação que se tornou possível graças ao fato de trazerem o nome dela os encanamentos do aparelho de esgotos ali encontrados. Até hoje podemos andar por algumas ,das salas e. recordar. as palavras do historiador romano Suetônio que deixou consignado, um tanto malevola­mente, que a casa não se distinguia nem pela sua vastidão nem pelo seu esplendor. [...]

Mas não foi Roma simplesmente a cidade do anfiteatro flávio para 55.000 pessoas, ou do Circo Máximo, estádio gigantesco capaz de conter 260.000 espectadores, com sua perigosa pista de corrida onde carros davam voltas e gladiadores combatiam até morrer; não foi Roma simplesmente a cidade dos magní­ficos foruns imperiais, do templo de Júpiter, do teatro de Marcelino, ou a cidade que ergueu as termas de Diocleciano e Caracala, os maiores banhos públicos da terra, equipados com uma espécie de ar condicionado que regularizava a temperatura nos quartos individuais, desprendendo ar quente através de aberturas nas paredes. Roma apresenta também outra face bem diversa.

Superpopulada, com suas ruas estreitas formigantes duma multidão clamorosa, era Roma uma cidade barulhenta e perigosa. De acôrdo com as mais recentes estimativas da moderna pesquisa, tinha Roma, no tempo de Augusto, 1.200.000 habitantes. Carroças com altas pilhas de madeira rodavam, rolavam-se barris desordenadamente pelas ruas e outras cargas estrepitavam sôbre rodas de vagão. Carregava-se pelas ruas mármore da costa da Ligúria (atual região de Gênova), com perigo para os pedestres, pois se um eixo se partisse, a carga se faria em pedaços e seria lançada sôbre os transeuntes. "Quem encontrará os membros, os ossos, o cadáver do plebeu?", perguntava o poeta romano Juvenal. Uma barra feriria alguém na cabeça, um prego fincar-se-ia no pé de algum outro; haveria vidros partidos ou uma vasilha a derramar seu conteúdo de uma janela aberta. "Você será um irresponsável - dizia Juve­nal - se andar pelas ruas de Roma à noite, sem de antemão fazer seu testamento". A cidade era tão barulhenta que não se podia dormir de noite. Os saudáveis perdiam sua saúde e os doentes suas vidas. Os aluguéis de casas eram elevados, os quartos pequenos, úmidos e escuros. Carroças passavam sempre com estrépito e às vêzes um berrante rebanho de animais obstruía o tráfego no meio da rua.

Mas os ricos eram carregados bem alto acima das cabeças da multidão por enormes escravos liburnianos. Tão fortes eram êsses escravos de Libúrnia (na Ilíria) que os romanos os empregavam como carregadores, mensageiros e guardas de corpo. Os ricos reclinavam-se em suas liteiras, cochilando ou escre­vinhando, mas sempre balançando sôbre quatro, seis ou mesmo oito pescoços humanos, através da cidade. Dois escravos apenas carregavam os cidadãos mais pobres.

Essa aglomeração tornava-se particularmente perigosa quando irrompia um incêndio, e Roma vivia num eterno temor de incêndios, especialmente à noite. Se fumaça saía do terceiro andar de alguma casa, podia-se ver alguém tirando seus trastes domésticos do edifício, mas ainda bem não chegava êle ao andar térreo o de cima vinha abaixo incendiado. Algumas casas de Herculano, preservadas pelas cinzas do Vesúvio em 79 depois de Cristo, têm sido escavadas e podem ver-se ainda nelas os velhos degraus de madeira, soalhos, mesas e guarda­roupas.

Vitrúvio, arquiteto e engenheiro do Imperador Augusto, dei­xou-nos o único documento da antiguidade referente a técnicas de construção e construção de máquinas. Relata que uma vez iniciado um incêndio, aquelas casas de madeira transfor­mavam-se em "verdadeiras tochas". Os corretores de imóveis romanos e os arquitetos preferiam êsse processo de construção por mais barato e mais rápido, mas as casas vinham também abaixo com a mesma rapidez. Augusto proibiu a construção de quaisquer casas de altura além de vinte e um metros mais ou menos (quase a altura de uma moderna casa de quatro andares), mas não conseguiu, por meio de leis, eliminar as casas de madeira.

Contudo, mandou Augusto erguer um muro à prova de fogo, com cêrca de quarenta jardas de altura, entre o seu Forum e o quarteirão da Suburra, densamente povoado. Depois, um dia, irromperam tantos incêndios simultâneamente, em dife­rentes lugares, que não houve número suficiente de gente para extingui-los. Em conseqüência, organizou Augusto uma brigada de fogo de 7.000 homens que financiou, criando uma taxa de quatro por cento sôbre a venda de escravos.

A Suburra achava-se localizada no sopé dos montes Célio e Esquilino e estava sempre repleta de gente, barulhenta e tresandante. Tôdas as espécies de alimento eram ali vendidas. E das três da tarde em diante, as prostitutas podiam ser vistas sentadas em altas cadeiras, completamente nuas ou envoltas em transparentes túnicas de sêda. Tinha aquêle quarteirão má fama como valhacouto de ladrões e muito assassinato foi ali planejado, mas era também o quarteirão em que os escravos faziam suas compras de objetos domésticos. Havia inúmeras lojas de comerciantes de lã, de tecedores de linho, de ourives, de cabeleireiros e barbeiros. E o policial estava sempre a postos, com seu cacete "pingando sangue", como o afirmou o escritor romano Marcial.

Por outro lado, faziam os romanos proeminentes e ricos suas compras na extremidade do Campo de Marte, perto do Forum, no distrito de Spta. Ali, oferecia Roma seus tesouros; viam-se as mais valiosas escravas, não ao ar livre, mas em barracas fechadas; marfim e casco de tartaruga; taças de cristal; belos vasos; jóias engastadas em ouro; brincos de orelha; ônix, jaspes e tôdas as pedras preciosas do Oriente. Ali anelavam as damas elegantes e cavalheiros de Roma e namorados cochichavam sob as arcadas vizinhas.

Roma tinha na verdade muitas faces. Roma era cordial, hospitaleira e generosa, recebendo todos os estrangeiros de braços abertos, absorvendo o espírito grego, a arte grega, a literatura grega, a ciência, a filosofia e, na realidade, tôda a cultura helenística. Passeavam em frente ao Forum, os gregos das ilhas de Andros e Samos, de Alabanda na Cária, onde o povo vivia no prazer e na extravagância; ou de Trales (a moderna Aidin, na Turquia ocidental). Eram êsses gregos adaptáveis, inteligentes e versáteis, competentes em qualquer profissão: oradores, gramáticos, mágicos, pintores, peritos em unção, massagistas, equilibristas em cordas têsas. Em breve prazo faziam fortuna e muitos eram recebidos pelas mais distintas famílias romanas. Depois, havia tantos orientais na cidade que Juvenal achou que se podia muito dizer que "o rio da Síria" (o Eufrates) derramava-se no Tibre. Vinham de tôda parte, Armênia, Cadapócia, Síria, e traziam suas peculiaridades próprias e costumes: flautas, harpas sírias com cordas oblíquas, tambores, tamborins e jovens de virtude fácil usando toucas bordadas e vadiando, com olhares ardentes, diante do Circo Máximo. :E:sses estrangeiros podiam fazer o que bem lhes agra­dasse, exceto uma coisa: não podiam usar a toga, pois era isto privilégio do romano. E contudo dia chegou em que até mesmo sírios e africanos se tornaram imperadores de Roma.

Roma era cruel, sensual e licenciosa, sempre insaciável nas suas paixões sem limites. Inúmeros acepipes atravessavam os estômagos dos romanos antigos: línguas de tordo e de fla­mengo; pavões, graus e cegonhas; fígados de gansos e capões; arganazes, burros selvagens e javalis; solhas e esturjões, e inauditos milhões de galões do mais fino vinho de Falemo. Importavam-se para Brundisium ostras de Rutupia (hoje Rich­borough, no condado de Kent), e bastava uma dentada numa ostra para que o gordo comilão Montanus, que participava das orgias noturnas de Nero, para saber se provinha de Baja ou dos ostreiros da costa inglêsa. Travessas de prata altas de lagostas e aspargos eram servidas por escravos e o mais delicioso peixe frito no mais fino azeite da cidade de Venafrum.

Roma era suntuosa e radiante, mas também desordenada e irresponsável, muitas vêzes sorrateira, arrogante e sem piedade. Explorava seus escravos na Etrúria e na Lucânia, nas pedrei­ras de minério, nas cabanas de alcatrão e nas minas da Espa­nha, durante a estação da colheita da uva e da oliva. E quando a noite afinal os libertava, tinham de definhar na prisão de escravo ou ergástulo. Mas os escravos eram também perigosos; os que se libertavam tornavam-se os senhores mais cruéis e Juvenal diz que "quanto maior uma casa, mais impudentes seus escravos".

Condenavam-se para sempre jovens escravas a girarem os moinhos manuais, e se se tornavam turbulentas na casa, a vara da patroa quebrava-se-lhe sem demora nas costas. Algumas jovens escravas infelizes tinham por encargo cuidar da pele e dos cabelos das ricas mulheres romanas. Trabalhavam com a parte superior do corpo nua e se um simples cacho do cabelo de sua patroa não ficasse exatamente no lugar devido, eram espancadas com um chicote de couro.

Roma era sanguissedenta, fria e desumana. Mantinham-se anos a fio os prisioneiros em casernas, preparando-os para combates mortais no circo ou no anfiteatro. Eram ali treinados com
férreo rigor por treinadores sem piedade. No anfiteatro de Flávio, no Circo Máximo, no Circo Flamínio, milhares de olhos pousavam-se lá na arena sôbre os gladiadores votados a matar ou morrer.

Os romanos eram imprevisíveis. Quando um gladiador ferido erguia a vista para o mar de caras que gritavam acima dêle, quando se esvaía em sangue e enfraquecia para morrer, ten­tava discernir se estava o povo agitando seus lenços, o que significava que sua vida deveria ser poupada ou se seus pole­gares estavam voltados para baixo, o que significava que tinha êle apenas poucos segundos mais de vida... Um derradeiro olhar para o sol. ...e entre os berros dos espectadores a arma de seu adversário o golpearia mortalmente.

Os romanos teriam rugido de prazer se tivessem visto o espetáculo de Ícaro: um homem condenado à morte, ao precipitar-se de grande altura no solo, com suas asas artificiais despeda­çadas. Panteras, tigres, leões e ursos, famintos e excitados até o ponto da mais extrema ferocidade eram soltos de suas jaulas subterrâneas, por baixo do circo. A Roma imperial não perdia uma só gôta de sangue. As massas tinham de saborear tudo e as execuções tornaram-se espetáculos públicos, com os mori­bundos como os protagonistas da tragédia. Membro por membro, decepava-se o corpo de alguns condenados à morte. Quem quer que fôsse jovem e impetuoso poderia assistir àquelas cenas de horror: corridas de carros ou combates de gladiadores. A mocidade de Roma, os ricos e pobres, os pom­posos e os adventícios, mas acima de todos suas imperiais majestades, gozavam do esplendor da glória festiva que banhava até mesmo a morte e o crime. Ovídio sugeria aos jovens romanos a freqüência ao circo, para ali encontrarem belas mulheres; ou "para sentar-se ao lado das môças virtuo­sas", como diz Juvenal.

A mulher romana gozava um tanto mais de liberdade que a grega e não vivia de certo tão hermeticamente enclausurada à moda oriental. Se raramente bebia vinho e não lhe era permitido reclinar-se nos banquetes como os homens, tinha liberdade de sair a fazer compras e de vez em quando acompanhava seu marido ao circo. As filhas da nobreza tinham pouca oportunidade de namorar pois se casavam jovens, escolhendo seus pais os maridos. Ofereciam suas bonecas aos deuses domésticos os lares, e depois tomavam parte no jôgo do rapto pelo noivo, em comemoração do rapto das sabinas. As môças de boas famílias aprendiam não só a ler, escrever e contar, mas a cantar, dançar e tocar cítara. Instruiam-se, além disso, nas literaturas grega e latina. As mulheres casadas ocupavam-se com bordados e fiscalizavam os escravos e a vida doméstica em geral. Mulheres más e cruéis eram raras entre os romanos; a maior parte eram francas e simples, leais, honestas e cordiais. E mães maravilhosas. A rica Aurélia, mãe de César, e Atia, a mãe de Augusto, não entregaram seus filhos aos cuidados dos escravos, mas educaram-nos elas próprias.

As inscrições nas paredes de Pompéia, Herculano e Estabia, não importa se encontradas em edifícios sagrados, mundanos, públicos ou privados, aproximam os romanos de nós como se tivessem vivido ontem. "Aqui mora a Felicidade". Era isso uma introdução a um sortilégio? Ou tinha o amoroso simples­mente marcado a casa para poder encontrá-la de novo? Que andaria pela mente do homem que rascunhou numa parede: "Quero quebrar as costelas de Vênus!"? E qual a natureza da môça por quem algum rapaz estava penando: "Minha vida, meu amor, divirtamo-nos um pouco!" Arrebatado por entu­siasmo sentimental, algum anônimo rabiscou para que fôsse lido eternamente: "Se há alguém que não tenha visto a Vênus pintada por Apeles, deixem-no olhar a minha amada!" E outro escreveu: "Se há fidelidade entre os homens, então eu te amei e a ti somente, desde que nos encontramos". Talvez haja sido uma mulher que muito sofreu quem se viu forçada a escrever: "Se você pode, mas não quer, por que, então, adia os prazeres e me dá esperanças? Por que sempre me promete voltar amanhã? Force-me a morrer, então, já que me está forçando a viver sem você. Por favor, não me atormente. O que a esperança levou a esperança também toma a trazer para aquela que ama".

Mas as cidades enterradas também nos falam do lado sórdido das paixões humanas. "Amei uma formosa donzela, por todos louvada, mas por baixo encontrei apenas corrupção". E encontraram-se três palavras que parecem explicar a destrui­ção de Pompéia como um castigo divino, três simples palavras que, mesmo 2.000 anos depois, nos fazem pensar: "Sodoma e
Gomorra". Teria sido um clarão de presciência que capacitou alguém a prever o dia do castigo? Quem quer que seja deve ter ouvido falar naquelas cidades pecadoras de outrora que pereceram em chamas e chuva sulfurosa, como Pompéia e Herculano, e contudo estava a 2.000 anos distante no tempo da catástrofe que ocorreu ao norte do Mar Morto.

Mas que são uns poucos milênios quando computados pelo relógio da eternidade que mede o ritmo do desenvolvimento humano? Tudo quanto fazemos, pensamos e criamos baseia-se no vasto alicerce das antigas civilizações. As obras magnifi­centes da Grécia teriam sido inconcebíveis sem o Antigo Oriente, sem a Suméria, Babilônia, Assíria e Egito. A vida dos gregos, sua grandiosa imaginação e energia criadora, irradiam pelo Mediterrâneo oriental até a Itália. Somente por­que Roma nos transmitiu a cultura grega é que o espírito da Grécia pôde espalhar-se por todo o mundo ocidental. Nas artes plásticas, na literatura e na ciência, muitíssimos outros povos da antiguidade realizaram muito mais que os romanos. Mas os romanos ultrapassaram a todos na arte da política que for­taleceram por meio de uma cultura unificadora. Unir todos os países da área do Mediterrâneo numa paz abrangente, somente Roma pôde fazê-la. Os romanos praticaram a Vida com tal imediatismo, eram tão pràticamente orientados e tão grandes estadistas e organizadores políticos que sua imagina­ção artística permaneceu necessàriamente em segundo plano. No campo da arte, não foram tão bem dotados como os gregos ou os egípcios, mas politicamente pode-se considerá-las, de certo, como o povo mais capaz que já existiu sôbre a terra.

LISSNER, I. Assim viviam nossos antepassados. vol. 2 Belo Horizonte: Itatiaia, 1959.

Nenhum comentário: