A Guerra do Peloponeso


Segundo as más línguas da época, Péricles desgraçou Atenas, criando inimizades com Mégara, porque alguns megarenses certa vez ofenderam Aspásia, roubando-lhe algumas meninas de sua casa de tolerância. Já naquela época o povo se divertia contando a história com nariz de Cleópatra.

N a realidade, o caso de Mégara, que foi o início da catástrofe não só de Atenas mas de tôda a Grécia, tem origens bem mais complexas e distantes. Não dependeu, absolutamente, da vontade de um homem, nem de um governo ou regime. Péricles não fêz política externa diversa da que qualquer outro teria feito, em seu lugar. Para Atenas não havia alternativa: ou ser um império ou não ser nada. Fechada na parte do continente, com poucos quilô­metros quadrados de terra árida e pedregosa, morreria de fome­ no dia que não pudesse mais importar trigo e outras matérias-pri­mas. Para importá-las, precisava continuar dona do mar. E para continuar dona do mar, sua frota devia manter em submissão os pequenos Estados anfíbios fundados pelos gregos nas costas da península, na Ásia Menor e nas ilhas, grandes e pequenas, que semeiam o Egeu, o Jônio e o Mediterrâneo.

O império de Atenas se chamava Confederação, como o dos inglêses se chama Commonwealth. Mas o que, na realidade, se escondia sob êsse nome hipocritamente democrático e igualitário era o contrôle comercial e político de Atenas sôbre as cidades que faziam parte da Confederação. Méton, quando atingida pela sêca e pela carestia, a muito custo obteve de Atenas a permissão de importar algum trigo com seus navios. Atenas pretendia ser a distribuidora das matérias-primas, antes de tudo para garantir a seus armadores o monopólio dos fretes e, segundo, para ter em mãos os meios de submeter, pela fome, os pequenos Estados quando nêles surgissem aspirações de autonomia. Apesar de todo o liberalismo, Péricles nunca afrouxou êsse contrôle. Como bom diplomata, defendia o direito da supremacia marítima de Atenas, em nome da paz. Dizia que sua frota assegurava a ordem. Em certo sentido, era verdade. Mas se tratava de uma ordem estritamente ateniense. Como seus predecessores, negava-se, por exemplo, a fornecer explicações sôbre o uso que se fizera das contribuições das várias cidades no financiamento da campanha contra a Pérsia. Na realidade, usara-as na reconstrução de Atenas e fazendo dela a grande metrópole que, em seu tempo, se tornou. Em 432, re­colheu dos Estados confederados a bela soma de quinhentos ta­lentos, uns quarenta e cinco milhões de cruzeiros. Era para "a causa comum", é claro, e para a frota que garantia a paz. Mas essa frota era só de Atenas e a paz convinha a Atenas, para manutenção de seu primado. Os cidadãos da Confederação não tinham os mesmos direitos. Quando surgiam lutas judiciárias em que estivesse envolvido algum ateniense, só os magistrados de Atenas tinham competência. Era o regime que hoje se chama de "capitulação" e que sempre caracterizou o colonialismo.

Enfim, a democracia de Péricles tinha seus limites. Dentro da cidade era monopólio de pequena minoria de cidadãos, excluindo a maioria - metecos e escravos. E nas relações com os Estados confederados, a democracia não existia, nem de longe. Em 459 Atenas usara a frota para tentar expedição ao Egito e expulsar os persas aí instalados. Mesmo vencidos, ainda constituíam pe­rigo e o Egito, além de possuir bases navais de primeira ordem, era o celeiro daquele tempo. A Confederação não tinha interêsse em anexá-lo, pois o trigo seria tomado por Atenas. Mas, assim mesmo, teve que financiar o empreendimento, que fracassou.

A aversão contra o patrão prepotente vinha de longe. Explodiu em Egina, depois em Eubéia e por fim em Samos. E a frota, que devia servir "à causa comum", também à dos três Estados que suavam sangue para a manter, serviu para os esmagar numa violenta repressão.

As repressões nunca são sinal de fôrça. São indícios de fra­queza. Foi assim que Esparta interpretou as de Atenas. Fechada em suas montanhas, Esparta não se tornara grande cidade cosmo­polita. Não tinha universidades, nem salões elegantes, nem lite­ratura. Em compensação, possuía muitos quartéis onde continua­ra instruindo os soldados com a disciplina e a mentalidade dos ca­micazes, como nos tempos de Licurgo. A posição geográfica no interior do Peloponeso, a composição racial de seus cidadãos, to­dos de origem dórica, e portanto guerreira, não misturados com os indígenas relegados à condição de servos e fora de qualquer participação, faziam dela a fortaleza do conservadorismo aristo­crático e terrestre. Seus homens políticos não tinham o brilhan­tismo dos de Atenas, mas possuíam o cálculo paciente dos agri­cultores e o sentido realístico das situações. Quando os emissários dos Estados vassalos e dos que temiam tornar-se vassalos de Ate­nas lhe solicitaram comandasse uma guerra de libertação contra a poderosa rival, Esparta declinou oficialmente mas, às ocultas, começou a tecer os fios de uma coalizão.

Péricles percebeu-o. Provavelmentl perguntou a si mesmo se não era o caso de reaver as simpatias perdidas, colocando as rela­ções da Confederação em bases mais justas e democráticas, ou concluiu, por si mesmo, que era impossível fazê-Io sem renunciar à supremacia naval, ou previu que perderia o "pôsto" se apre­sentasse tal proposta à Assembléia. O fato é que preferiu afrontar os riscos de um rigor ainda maior. Seu plano era simples: em caso de guerra, trazer tôda a população da Ática e todo o exército para dentro dos muros de Atenas, limitando-se a defender a cidade e o pôrto. A supremacia do mar lhe permitiria uma re­sistência infinita. Procurou evitar o conflito, proclamando o que hoje chamaríamos de "conferência de cúpula" pan-helênica. Dela participariam representantes de todos os Estados gregos, tentando solução pacífica dos problemas. Esparta achou que aderir seria reconhecer a supremacia de Atenas. Recusou. Seria como se hoje a América convocasse uma conferência mundial e a Rússia a negasse, ou vice-versa. Seu exemplo levou muitos Estados a fa­zerem o mesmo. O fracasso foi mais um degrau para o conflito, cujas bases já estavam lançadas. Tratava-se de saber quem, entre Esparta e Atenas, tinha a fôrça de unificar a Grécia. Atenas era um povo jônico e mediterrâneo, era a democracia, a burguesia, o comércio, a indústria, a arte e a cultura. Esparta era uma aris­tocracia dórica, setentrional, terrestre, conservadora, totalitária e grosseira. Tucídides acrescenta a êstes motivos de guerra, mais outro: o aborrecimento causado pela paz, já muito longa, especial­mente às gerações novas, inexperientes e turbulentas. Teoria que não é de desprezar.

O primeiro pretexto foi dado por Corcira (Corfu) em 435 antes de Cristo, insurgindo-se contra Corinto, de que era colônia. Cor­cira pediu para entrar na confederação ateniense. Em palavras mais simples, pediu a ajuda da frota. Esta veio imediatamente e se encontrou com a frota de Corinto, vinda para manter o status quo. O resultado foi incerto. Não resolveu nada. Três anos depois, Potidéia fêz o contrário. Colônia de Atenas, revoltou-se e pediu ajuda de Corinto. Péricles mandou contra ela um exército que a assediou durante dois anos, mas não conseguiu expugná-la. Os dois insucessos foram um golpe terrível para o prestígio de Atenas. Quando se quer mandar, primeiro é preciso mostrar que se tem fôrça para o fazer. Mégara, rebelde, encorajou-se. Alinhou-se ao lado de Corinto que, por sua vez, chamou Esparta. Atenas impôs o bloqueio de Mégara. Queria vencê-la pela fome. Esparta protestou. Atenas retrucou que se prontificava a retirar as sanções se Esparta aceitasse um tratado comercial com a Con­federação. Seria entrar para o Commonwealth. Era uma proposta provocante .. E Esparta reagiu com uma contraproposta no mesmo tom. Estava disposta a aceitar se Atenas, por sua vez, reconhecesse completa independência aos Estados gregos. Seria a renúncia do primado imperialista. Péricles não hesitou em negar, sabendo mui­to bem que aquêle "não" significava a guerra.

A divisão das fôrças era clara: de um lado, Atenas, com seus duvidosos confederados do Jônio, do Egeu e da Ásia Menor uni­dos pela frota; do outro, Esparta com todo o Peloponeso (menos Argos, que era neutra), Corinto, Beócia, Mégara, unidos pelo exército. Péricles executou logo seu plano. Chamou as tropas para dentro dos muros de Atenas. Abandonando a Ática ao inimigo, que a saqueou, mandou seus navios levarem a confusão para as costas do Peloponeso. O mar era seu. Portanto, o abas­tecimento era seguro. Tratava-se de esperar que o fronte inimigo se desintegrasse.

Talvez isso viesse a ocorrer. Mas o ajuntamento de Atenas provocou uma epidemia de tifo que dizimou soldados e população. Como sempre acontece em tais casos, os atenienses, em lugar de procurar o micróbio, procuraram o responsável. Naturalmente, ha­via de ser Péricles. Já enfraquecido no processo de Aspásia, a guerra lhe multiplicara os inimigos à direita e à esquerda. Da esquerda, o mais encarniçado era Cléon, curtidor de peles, gros­seiro, demagogo e corajoso. Acusou Péricles de peculato. E como Péricles não pudesse, realmente, dar conta dos "fundos secretos" que usara para tentar corromper os estadistas espartanos, foi deposto e multado exatamente quando a epidemia lhe roubava a irmã e os dois filhos legítimos. Ê verdade que, arrependidos, logo depois os atenienses o repuseram no poder e, abrindo exceção à lei que êle mesmo impusera, deram cidadania ao filho que tivera de Aspásia. Mas o homem já estava moralmente acabado. Poucos meses depois também o físico chegava ao fim. Triste epílogo de uma carreira gloriosa. Quem o substituiu foi Cléon, sua antítese humana. Aristóteles diz que Cléon subia à tribuna em mangas de camisa e falava aos atenienses numa linguagem mal­criada, grosseira e pitoresca. Mas foi bom general. Derrotou os espartanos em Esfacteria, repeliu-lhes as propostas de paz, subjugou com inaudita violência as revoltas dos confederados e, por fim, morreu lutando como um leão contra o herói espartano Brá­sidas.

A guerra, que já campeava furiosa havia dez anos, semeara a ruína por tôda a Grécia. E não se chegava a nenhuma solução. Ameaçada por uma revolta de escravos, Esparta propôs a paz. Atenas aderiu, seguindo, afinal, o parecer dos aristocratas con­servadores. Um dêles, Nícias, assinou em 421 o tratado que levou o seu nome. O tratado previa uma paz de cinqüenta anos e a colaboração entre os dois Estados caso houvesse revolta de escra­vos em algum dêles. Para manter as injustiças sociais, os grandes adversários encon­traram a concórdia.

MONTANELLI, I. História dos Gregos. São Paulo: Ibrasa, 1968.

Nenhum comentário: