Creta e a Grécia Arcaica


A igual distância da Europa, da Ásia e da África se encontra a ilha onde nasceu e se desenvolveu a mais antiga civilização européia. Creta, que Homero chamava o "país situado no meio do mar violeta" foi seu berço.

Foi Creta, com efeito, o foco da primeira civilização mediter­rânea. Quando a Grécia atingiu o seu apogeu, Creta já havia entrado no domínio do mito e da lenda. Quando a batalha se encarniçava sob os muros de Tróia - o sítio durou dez anos, de 1194 a 1184 antes de Jesus Cristo - a civilização cretense já existia havia dois milênios e, por ocasião do nascimento de Cristo, havia mil e quatrocentos anos que as risadas das damas da côrte e das cortesãs de Cnossos se haviam calado; seus vestidos, seus corpetes de mangas fôfas enfeitadas de rendas estavam reduzidos a pó. Creta pertencia ao passado lendário e, durante cêrca de dois mil anos, tudo quanto se referia à sua civilização foi taxado de invenção até o dia em que um acaso revelou a verdade.

Sôbre uma colina, ao sul de Candia, um comerciante cretense descobriu, em 1878, objetos de aspecto insólito; êsse comerciante tinha um nome sonoro: Kalokairinos. Em 1886, isto é, oito anos mais tarde, um homem magro, nervoso, de olhos avermelhados pelas longas vigílias, visitou a região. Tinha um faro espantoso para descobrir as ruínas que dormiam na terra desde milênios. Esse estrangeiro chamava-se Henrique Schliemann. Declarou, êle que já encontrara os restos de Micenas e de Tróia, que o local em que se encontrava era o dos palácios de Cnossos.

Tinha Schliemann como regra compulsar e estudar as obras dos autores gregos da Antiguidade. Antes de empreender esca­vações, sabia exatamente o que procurava e o lugar onde convinha meter a picareta. Imediatamente negociou com o proprietário do terreno; apressado, queria começar imediatamente os trabalhos. Mas o camponês pediu uma soma que Schliemann achou exorbitante. As negociações interrompe­ram-se e Schliemann renunciou a seu projeto e à oportunidade que lhe era oferecida de descobrir, além de Tróia, Cnossos, berço da civilização cretense. Morreu alguns anos mais tarde. Em 1893, o arqueólogo inglês Artur Evans, comprou, em Atenas, pedras em forma de crescente; a velha que lhas vendeu utilizava-as como amuletos. Foi a atenção de Evans atraída por hieróglifos gravados naquelas pedras; ninguém lograra decifra-los.

O arqueólogo tem tudo de um detetive. Por meio de dedução, chegou Evans à conclusão de que os hieróglifos deviam ser de origem cretense. Seguiu para ilha, recolheu no decorrer de suas andanças muitos objetos encontrados pelos camponeses, depois comprou o terreno que recobria as ruínas de Cnossos. Sob suas ordens, cento e cinqüenta trabalhadores em desa­terros revolveram a terra durante nove semanas. O resultado foi a descoberta do maior e magnificentíssimo monumento trazido a lume pelos arqueólogos do século XX: o palácio do rei Minos.

"Penetrávamos num universo novo - escreve Evans, - a cada passo afundávamos na escuridão do passado. Nenhum edifício podia servir de modêlo e era impossível proceder a buscas sistemáticas. Aquêle palácio eclipsava pelas suas proporções a tudo quanto se conhecia da antiguidade; a surprêsa foi total."

Evans encontrou milhares de tabuinhas e de sinêtes cobertos de hieróglifos semelhantes aos das pedras que havia comprado em Atenas. A grandiosa civilização que vira o dia em Creta achou-se bruscamente revelada.

Como os sêres vivos, as cidades crescem, desenvolvem-se e morrem; a 'cada estádio de expansão corresponde uma camada de terreno determinada. O nível superior é o mais recente, o inferior o mais antigo. Verificou Evans que os bronzes minóicos remontavam a três mil anos antes de Jesus Cristo, mas que, sob as camadas nas quais os havia encontrado, outras camadas continham restos neolíticos datando de dez mil anos antes de Jesus Cristo. Era a prova de que a civilização minóica, con­temporânea do palácio de Cnossos, fôra precedida por outras, na época pré-histórica; sua origem perdia-se na noite dos tempos. É claro que a civilização minóica resultou duma longa evolução: ela não começou bruscamente em 3.000 ou em 2.000 antes de nossa era. Em quase todos os países do globo, existem, aflorando da terra, ruínas e vestígios que testemunham esforços despendidos pelos que nos precederam para conduzir a humanidade pela via do progresso. A civilização minóica não é uma exceção.

Em 1936, cumulado de honras e enobrecido, publicou Evans seu livro: O PALÁCIO DE MINOS EM CNOSSOS. Esta obra em seis volumes é, em suma, a obra de uma vida de pesquisas e de estudos. Abre perspectivas grandiosas para um universo fantástico e revela as origens míticas do reino de Cnossos. Para não nos perdermos nessa obra, são precisos, não obstante, certos conhecimentos que Evans pressupõe nos seus leitores. Mas uma questão se apresenta: como chegou Evans à conclusão de que era em Creta que se precisava procurar o palácio de Cnossos, residência do rei Minos?

Ora é fato que as lendas contêm sempre um fundo de verdade e, na ocorrência, narrativas e poemas míticos são guias fiéis. A "Ilíada" e a 'Odisséia" são as mais antigas fontes conhecidas relativas a Creta e sua história. Homero, que viveu em 800 antes de Cristo, fala do palácio de Cnossos e fornece nume­rosos dados precisos sôbre Minos e seu reino. Herôdoto (484 a 425 antes de Jesus Cristo), o grande historiógrafo da Anti­guidade, faz também alusão a Minos, à sua frota e a uma· expedição cretense à Sicília. Tucídides, historiador célebre pela sua imparcialidade, nascido em Atenas em 455 antes de Cristo, insiste na potência naval de Creta. Enfim, Aristóteles, filho dum médico grego, que nasceu em 385 numa aldeia da Mace­dônia, relata que, graças à situação geográfica de Creta, o rei Minos impôs seu domínio às ilhas e aos países banhados pelo Mar Egeu.

Mas os mitos gregos são mais precisos ainda; são êles que revelam a existência do Minotauro, metade homem e metade touro, que aterrorizava a cidade de Cnossos. Trata-se de um animal lendário?

A palavra "Minotauro" é formada pelo nome do rei Minas e pela palavra grega "tauros", que significa touro. No decurso das escavações de Cnossos encontraram-se efetivamente nume­rosas efígies, pintadas ou esculpidas, do touro, prova do que êsse animal ocupava parte importante na vida cretense. Na côrte de Minas, as proezas tauromáquicas gozavam de grande honra. Rapazes e môças agarravam o animal pelos chifres e, servindo dêles como ponto de apoio, executavam um salto perigoso antes de recair de pé sôbre seu dorso. Um afrêsco mostra uma môça a quem um touro traspassa seus chifres, no momento em que ela se prepara para saltar. Talvez crianças cativas fôssem especialmente treinadas para êsse esporte, entre todos perigoso. Se Minos submeteu os atenienses e se os obri­gou a pagar-lhe tributo, compreende-se sem dificuldade que a imaginação popular tenha feito do soberano de Cnossos um monstro sangüinário, metade homem, metade touro. Minos, diz a lenda, mandou encerrar o Minotauro num edifício, conhecido depois sob o nome de labirinto.

A principal divindade adorada pelos cretenses era a Deusa ­Mãe que os gregos chamavam Reia; Reia é quase sempre representada tendo nos braços um deus, seu filho sem dúvida. Têm a mãe e o filho um atributo comum: um duplo machado, com o qual se identificam. O têrmo cário que a designa é "Labrys". Nas ruínas do palácio de Cnossos, o duplo machado acha-se representado em tôda parte; "labrys" serviu igualmente para formar a palavra labirinto. Velho de cinco mil anos, foi êsse têrmo utilizado pela primeira vez em Cnossos.

Designava o palácio inteiro ou um verdadeiro labirinto, desa­parecido desde muito tempo, mas cuja lembrança permanecera vivaz na tradição cretense? Ninguém o sabe. Mas o fato é que encontraram-se marcas labirintiformes em moedas e, nas, ruínas do palácio de Cnossos, as subestruturas duma constru­ção cuja disposição corresponde à do famoso labirinto. f:sse edifício, ora representado sob uma forma redonda, ora retan­gular, encerrava um comprido corredor que se encaracolava sôbre si mesmo. Para chegar ao centro, era preciso caminhar muito tempo e ninguém podia reencontrar a saída.

A vários quilômetros de Creta, a 24 de agôsto de 79 depois de Jesus Cristo, uma erupção do Vesúvio destruiu a cidade de Pompéia. Sob a cinza, encontrou-se um desenho gravado pela mão inábil duma criança e esta inscrição: "Labirinto! Aqui mora o Minotauro". É pois a prova de que êsse jovem romano anônimo conhecia a história do labirinto e de seu ocupante. Sabe-se igualmente que, nas escolas romanas, a lenda do Mino-
tauro era ensinada aos meninos com o mesmo valor das ver­dades históricas.

O construtor dos palácios de Cnossos e o inventor do labirinto foi o arquiteto Dédalo; ora, não se pode negar a existência real de Dédalo. Genial inventor, Dédalo causava espanto a seu senhor Minos por sua ciência e por sua habilidade. Escultor de grande talento, criava estátuas de aspecto tão vivo e tão natural que os gregos pretendiam que, a menos que as acor­rentassem a seu pedestal, dêle desceriam. Foi também Dédalo o pioneiro da aeronáutica no dia em que, encerrado no labirinto com seu filho ícaro, confeccionou asas que lhes permi­tiram escapar. Mas essas asas eram seguras com cera e Ícaro cometeu uma falta: aproximou-se do sol e caiu no mar. Dédalo alcançou, são e salvo, a Sicília, onde tornou conhecida a civili­zação cretense e esculpiu magníficas estátuas, entre outras um baixo-relevo de mármore representando Ariana, filha de Minos, dançando. Essas estátuas existiam ainda em 200 depois de Jesus Cristo e estavam os gregos persuadidos de que Dédalo era um personagem histórico.

A história de Teseu e Ariana corresponde também a uma realidade. Todos os nove anos, era Atenas obrigada a fornecer a Minas sete rapazes e sete môças, futuras vítimas do Mino­tauro. Teseu, filho do rei Egeu, ofereceu-se para partilhar a sorte dêles, mas sua intenção era matar o monstro. Ariana, filha de Minos, apaixonou-se por Teseu; entregou-lhe uma espada e um novêlo de linha. Desenrolada, devia essa linha permitir que o jovem grego encontrasse a saída do labirinto. Teseu matou o Minotauro, depois, graças à linha, saiu do dédalo e fugiu com Ariana para a ilha de Naxos, onde com ela se casou, como lhe havia prometido, mas, aproveitando do sono de sua espôsa, juntou-se o ingrato a seu companheiros e se fêz à vela.

Lendas, como as de Teseu e Ariana, são raramente produto apenas da imaginação popular; um edifício tão característico como o labirinto não se inventa. O que se ignora é a época em que existia. Conheciam-no os moradores de Cnossos? Ou o labirinto destruído não passava duma lembrança? Assim se explicaria que os cretenses houvessem esquecido sua forma.

Convencido de que Minos fôra o senhor não só de Cnossos e de Creta mas de um império marítimo e supondo que "minos" era um título análogo ao de "faraó", dado aos soberanos do Egito e não um patronímico, batizou Evans de "minóica" a civilização cretense. As escavações a que se entregou trouxe­ram a prova de que, em Creta, o período neolítico terminara nas proximidades de 3.400 antes de Jesus Cristo; sucedeu-lhe a idade do bronze. Dividiu Evans a civilização minóica em três períodos: minóico antigo (3400-2100), minóico médio (2100­1580) e minóico recente (1580-1250). Essa datação foi tanto mais difícil de estabelecer quanto não existe nenhum índice que permita traçar uma cronologia exata. Foi graças a uma aproximação com anais egípcios, bastante precisos, e tomando como base de comparação as relações comerciais que existiam entre Creta e o antigo Egito que se chegou a datar certos acontecimentos históricos de que foi teatro Creta.

Cêrca de 2100, os príncipes de Cnossos, de Festos e de Malia mandaram construir magníficas residências; compreendiam grande número de salas, de estúdios, de armazéns, de pátios, de escadarias e de galerias. Ergueram-se altares e templos, criaram-se engenhosos sistemas de adução d'água. Ornaram-se as paredes dos palácios de afrescos e os hieróglifos antiga­mente utilizados pelos cretenses transformaram-se em escrita linear.

Cêrca de 1700 antes de Jesus Cristo, uma catástrofe - um sismo sem dúvida - destruiu o palácio de Cnossos. Ou então ter-se-á de atribuir essa destruição aos habitantes de Festos. Esta hipótese nada tem, com efeito, de inverossímil porque, um pouco mais tarde, foi o palácio de Festos também reduzido a cinzas. Mais tarde ainda, outras cidades: Mochlos, Gurnia, Palaiokastro, etc. tiveram a mesma sorte. Sôbre as ruínas, novos edifícios, ainda mais suntuosos que os precedentes, erguem-se em Cnossos, em Festos, em Tilissos, em Hagia-Triada em Gurnia. A riqueza aumenta nas mesmas proporções que em Atenas, mil anos mais tarde. No pátio dos palácios, constroem-se teatros; gladiadores enfrentam os animais ferozes. O artesanato e a literatura estão em pleno desenvolvimento; os ricos têm necessidade sempre crescentes de luxo e de confôrto. A idade de ouro de Creta situa-se entre 1600 e 1400 antes de Jesus
Cristo; a civilização minóica se estende a tôdas as ilhas e às terras marginais do Mar Egeu.

Mas, em 1400, esse brilhante edifício se desmorona. Um cataclismo, de amplitude colossal, reduz a nada os esforços desenvolvidos desde séculos, senão milênios, pelos habitantes de Creta.

LISSNER, I. Assim viviam nossos antepassados, vol.2. Belo Horizonte: Itatiaia, 1959.

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