O Surgimento da República Romana


Tarquínio, o Soberbo, o último dos reis romanos, foi um tirano; seu filho Sexto violentou a casta Lucrécia, mulher de L. Tarquínio Colatino, a qual denunciou o crime e “em seguida se apunhalou”. L. Júnio Bruto informou o povo acerca do agente e do acto:
“Os Romanos, plausivelmente, deram a sua anuência Ao desterro perpétuo dos Tarquínios”,
e “o governo do Estado passou dos reis para os cônsules”. Desta maneira se exprimiu Shakespeare, verificando-se que este não foi mais romântico que a própria tradição romana. Os primeiros cônsules foram Júnio Bruto e Tarquínio Colatino, cedendo este último o lugar a P. Valério Publicola. Bruto e Publicola estabe­leceram as instituições funcionais da República. Quando Bruto morreu em combate contra os Etruscos, sucedeu-lhe primeiro Sp. Lucrécio Tricipitino e depois M. Horácio Púlvio, que con­sagrou o Templo Capitolino. Não faltou pois à República o seu grupo de fundadores, reunidos um tanto artificialmente!

A verdade pode agora parecer-nos tão estranha como a ficção, mas se tivermos outros motivos para suspeitar que a imaginação histórica e literária influenciou a versão dos factos, então não necessitamos de continuar a manifestar a nossa credulidade. A versão romana acerca da fundação da República e dos seus pri­meiros anos parece duvidosa. Como puderam os últimos escri­tores conhecer os pormenores? Mesmo a própria tradição romana não desfaz algumas dúvidas. Lars Porsenna atacou Roma - Horá­cio Coc1es “conservou a ponte” - e talvez tenha ocupado a cidade durante certo tempo. Os templos de Saturno, Ceres e Castor e Pólux datam dos primeiros anos da República, embora repre­sentem cultos gregos sobre os quais seria natural pensar-se - nesta altura - terem penetrado em Roma através da Etrúria. De qual­quer modo, é muito difícil admitir que os Romanos tenham inter­rompido todos os seus contactos com a Etrúria, pelo menos no que se refere ao comércio que apoiava a sua vida urbana, mesmo que aquele tenha diminuído. A República não se isolou a si pró­pria antes de se aventurar no seu destino imperial. Existem moe­das que mostram Júpiter e o Templo Capitolino, o qual a Repú­blica herdou dos Tarquínios e de que fez símbolo do Estado: um templo de seis colunas, como indica o traçado do terreno. Uma moeda existente pouco depois da sua destruição pelo fogo, em 83 a. c., apresenta-o apenas com quatro colunas (por erro do artista); uma outra moeda posterior já o representa correcta­mente. Depois, temos uma moeda com a cabeça da Libertas e com Júnio Bruto deslocando-se com dois lictores e um servidor no começo da República. Não devemos aceitar completamente a história romana tal como chegou até nós, isto é, com cunho patriótico e idealizada; contudo, também não devemos negar impensadamente a possibilidade de os Romanos terem come­çado a governar-se a si mesmos na altura que indicam.

Não se pretende aqui descrever; mas sim discutir a questão, de extraordinária importância para a jovem República. Teremos de decidir se é de manter ou de eliminar o seu primeiro meio
século. A República foi fundada por volta de 500 a. C. ou não o foi até, digamos, ao ano 470, ou, mesmo 450 a. C.? Os dados necessários para termo de comparação baseiam-se em elementos arqueológicos incompletos, mas que aumentam continuamente. Temos de considerar isto uma “hipótese de trabalho”, em que é importante definir os termos do problema. O leitor tornará a encontrar referências a este assunto.

A arqueologia italiana é extremamente importante, mas, no que diz respeito ao problema em causa, temos de nos socorrer de Gjerstad, o qual se socorreu do trabalho sobre assuntos históricos de Hanell, da escola sueca de pensamento. Gjerstad considera que Roma, como cidade, foi fundada por volta do ano 575 a. C. e argumenta, com base em ruínas e artefactos, que a influência etrusca aumentou até que os seus reis, possivelmente por volta de 525, adquiriram o domínio político: os dois Tarquí­nios, separados pelo reinado do latino Sérvio Túlio; afirma ainda que este período se prolongou até cerca de 450 a. C., altura em que foi estabelecida a República. Sob o domínio etrusco, Roma impor­tou cerâmica grega, que se pode localizar no tempo, como é o caso de elegantes peças áticas com figuras a negro e da primeira cerâ­mica com figuras a vermelho; esta importação continuou até cerca de 450. Gjerstad argumenta que isso só foi possível sob o domínio etrusco. Que se passa então no que toca aos primeiros cinquenta anos da República? Os historiadores romanos forneceram uma lista de cônsules, os principais magistrados do Estado, cujos nomes - ou a maior parte deles - devem ter sido convenientemente preservados em registos, mesmo só para efeitos cronológicos. Pois bem: Hanell associou esses nomes a personagens ligadas ao culto de J úpiter, por certo instituído pelos reis etruscos: os nomes podiam ter servido para fixação cronológica dos factos, depois de iniciada a era capitolina. Estudando a lista, Gjerstad encontrou nomes etruscos nos períodos de 509-490 e 461-448 a. C. e nenhuns outros de permeio: os dois períodos, presume ele, repre­sentavam os reinados dos Tarquínios, e o intervalo entre eles e o de Sérvio Túlio. Os historiadores romanos, não compreendendo o verdadeiro significado dos registos, tomariam o último período real pelo primeiro da República. Mas os nomes etruscos são dema­siadamente escassos para poderem servir de prova. Porque não teriam ficado em Roma alguns cidadãos etruscos depois da expul­são dos reis, para continuarem a sua vida no seio da população mista da cidade? Que se passa, também, quanto aos acontecimentos registados durante os primeiros anos da República, como, por exemplo, o concilium e o aparecimento dos tribunos da plebe? Existe realmente um verdadeiro problema no facto de surgirem nomes plebeus entre os cônsules antes de 486 a. c., o que sugere ter-se travado luta no interior do Estado e também contra ini­migos estrangeiros durante os primeiros anos da República.

Como devemos pois apreciar o problema apresentado por aqueles testemunhos pouco definidos? É uma simples questão de método. Quanto aos testemunhos arqueológicos, a definição exacta de datas nunca é fácil, a menos que os achados contenham expressamente em si essa indicação: de outro modo, depois de se estabelecer a sua sequência relativa, tem de se avaliar a aproxi­mação no tempo. Consideremos, por exemplo, a data da organi­zação da cidade por volta de 575 a. c.: podia ter sido cerca de 600 a. c., só com uma diferença de vinte e cinco anos, simples margem de erro numa estimativa - mas, no presente caso, isto é um ponto crítico, pois então o período real podia ter termi­nado pelo ano 500 a. C. A cerâmica grega confirma' as ligações comerciais de Roma, provavelmente através da Etrúria, depois de 500 a. C. À luz das provas arqueológicas, podemos crer que os reis etruscos governaram em Roma antes do ano 500 - mas por quanto tempo? A resposta só pode ser baseada numa estima­tiva. Poderemos situar a primeira organização da cidade no período inicial do século? Somente calculando a extensão do período anterior aos reis etruscos. Estimativa sobre estimativa, dentro do período de um século e meio, quando temos tanta necessidade de rigor histórico!

Vamos agora mudar de tipo de testemunhos - da arqueologia, que tem pelo menos as suas próprias regras, passemos à tradição romana, que exige métodos de análise completamente diferentes. O período dos Tarquínios e de Sérvio Túlio é mais ou menos definíve1. Mas o que se passou com os reis anteriores ao período etrusco, essas nebulosas figuras, cuja cronologia - se é que alguma vez eles existiram - não pode ter sido conhecida pelos romanos vários séculos depois? Não temos qualquer possibilidade de fazer um cálculo aproximado. Iniciado em 575 a. c., ou mesmo por volta de 600 a. C., não é forçoso que o período real tenha ultra­passado o ano de 500 a. C. De qualquer modo, o estudo de um caso que envolve a rejeição do período inicial da República não deve ser baseado nos dados fornecidos pela tradição quanto aos primitivos reis romanos.

Assim, voltemos aos anos 500-450 a. C. Os testemunhos arqueológicos indicam que Roma ainda tinha contactos com a Etrúria; a tradição romana já dava a República como estabele­cida. Até que ponto são válidos os relatos existentes? Em pri­meiro lugar, um ponto de ordem geral: as transformações políticas não destroem necessàriamente as relações comerciais. Os Etruscos foram comerciantes pragmáticos e tiveram contatos estreitos com cidades independentes, enquanto os Romanos tinham de apoiar a sua vida urbana. Assim, somos levados a admitir como factos possíveis os referidos pela posterior idealização romana acerca da sua própria história. Os historiadores construíram uma imagem gloriosa da República: nós podemos dar um certo desconto aos elementos contidos nessa tradição. Mas, depois de a desnudarmos dos seus floreados, não precisamos de negar as suas bases. A his­tória crítica não derruba os floreados ornamentais tecidos em redor dos factos. Contudo, Hanell, e igualmente Gjerstad, são mais cuidadosos ao correlacionarem a primitiva lista de magistra­dos não com os cônsules, mas sim com os funcionários do culto capitolino. Esta é uma versão possível somente se se admitir a tradição romana. Mas porque rejeitá-la nos seus elementos básicos? Proceder desse modo resolveria alguns problemas mas levantaria outros. Podíamos, com certo fundamento, considerar o início da República por volta de 470 a. c., mas não há razão - até agora­para negar a existência de uma geração envolvida em luta incerta. A fascinação da arqueologia consiste em revelar sempre alguma coisa de novo e, por isso, podemos aguardar esse algo de novo para tomarmos uma decisão.

Se não eliminarmos os primeiros cinquenta anos da República romana, devemos anotar resumidamente o que a tradição registou. A República não foi necessàriamente implantada em 509 a. c., - houve posteriormente um certo ajustamento no cálculo do
tempo -, mas sim perto de 500 a. C. Os acontecimentos iniciais têm estado sujeitos à elaboração histórica ao longo dos séculos. Mas não há dúvida de que dois magistrados anuais, os cônsules, se apoderaram da autoridade executiva do rei. Havia famílias proeminentes a apoiá-los, particularmente as famílias patrícias, quer as rurais quer as aristocráticas, enquanto certas famílias plebeias na cidade se mantiveram na primeira situação. Os chefes militares etruscos, como Lars Porsenna, podem ter ameaçado e, mesmo, ocupado Roma, mas não destruíram o novo regime; os Romanos, que, sob a orientação etrusca, tinham conseguido dominar o Lácio, concordaram em manter relações de igual­dade com os Latinos (o foedus Cassianum de 493 a. C.). Embora continuassem a fazer parte da esfera etrusca, lutaram por se liber­tar politicamente e auxiliaram as cidades latinas na defesa comum Contra as tribos montanhesas. Dentro do Estado Romano, as famí­lias plebéias deixaram de ter acesso à função pública mais ele­vada, mas conseguiram constituir à sua própria assembléia, com os seus funcionários, os tribunos da plebe, a fim de protegerem os direitos da generalidade do povo, como os nobres protegiam as pessoas de si dependentes. Pelo ano 450 a. c., a situação tinha-se definido e já ninguém duvidava da existência da Roma Republicana. A partir desta altura, podemos falar da organização e da política romanas e considerar os seus métodos de expansão e afinidades políticas, os quais, apesar dos retrocessos e das dificuldades, pros­seguiriam firmemente no sentido da unificação da Itália.

McDONALD, A. Roma Republicana. Lisboa: Verbo, 1972.

Nenhum comentário: