A Civilização da Pérsia Aquemênida

A lança do homem persa penetrou ao longe... " A frase de Dario faz pen­sar. Como, em apenas um século, os reis aquemênidas de Ansan pu­deram se tornar os senhores incon­testáveis de todo o Oriente? É certo que as qualidades excepcionais de Giro, o Grande, de Gambises e de Dario explicam o fato em gran­de parte. A seus méritos acrescentam-se os dos Persas e dos Medos: os grandes chefes são sem­pre apenas a recompensa dos povos.

O Iranismo, isto é, o conjunto de tradi­ções, costumes, crenças que dividem Medos e Persas, representava na época uma fonte de poderio inegável." Essa afirmação de Van Effeterre não pode ser contradita. O império persa, o pri­meiro de tanta importância e o primeiro a reagru­par tantos países e povos diferentes, tirava sua força e estabilidade de um novo estado de espíri­to. Ele é o produto de um povo feito para conquis­tar e organizar.

Rompendo totalmente com as cruéis tradi­ções do militarismo assírio, esse espírito imperial ultrapassa o despotismo. Está ligado à coesão e ao bem-estar dos povos. Destruindo os antigos costumes orientais, cria então um acontecimento único na história, através da originalidade de seus princípios.

O rei dos reis: o eleito dos deuses

No topo do império: o rei. Seu título de khshathra (guerreiro) indica claramente a origem militar da monarquia persa. Os reis aquemênidas são eleitos pela ordem dos guerreiros. Alguns príncipes, como Ciro e Dario, cuidarão de dirigir suas eleições ainda em vida para que um de seus filhos seja designado como sucessor. Mas o prín­cipe continua.

Em caso de ruptura ou na ocasião de um interregno, como vimos na época da morte de Cambises, as famílias da aristocracia guerreira colocam essa escolha sob a égide dos deuses. O cavalo, animal sagrado do deus solar, designa en­tão o eleito dos deuses. Essas formas de designação do soberano enquadram-se bem nas tra­dições indo-européias onde o poder supremo
cabe de modo geral a um nobre guerreiro esco­lhido por seus companheiros ou o rei é eleito pelos deuses.

Pela imagem e pela escrita, Dario reconhe­ce que seu poder emana do deus Ahura Mazda. Em seu sinete-cilindro de calcedônia, um ser a meio-corpo, barbudo e coroado, apóia a mão es­querda sobre o disco alado e eleva a mão direita para abençoar e proteger.

Cavaleiro místico, arquétipo divino

"Esse simbolismo do 'Sábio Senhor", co­menta Joseph Wiesner, "acompanha o carro de caça real puxado por dois cavalos, que sai à caça do leão. Ele vaga pelo meio do campo entre o Grande Rei que atira com o arco e o leão atingido erguido de frente para a parelha de cavalos." O soberano representa o poder luminoso de Ahu­ra Mazda. Ele é o herói radiante enfrentando o velho príncipe da morte, o demonismo refratário do Mal, o espírito mau de Ahriman, que simboli­za o leão.

Esse símbolo encontra-se num baixo-relevo de Persépolis: o rei está de pé, em frente a um grifo de chifres que já lançou suas garras sobre ele, enquanto o gládio real encontra-se enfiado no corpo da fera. E o baixo-relevo rupestre de Behis­tum, onde vemos Dario massacrar o usurpador Gaumata, é apenas a versão da história.

"Ser cavaleiro, ser mestre no arco e dizer a verdade", essas exigências da ética iraniana são as do Grande Rei. Cavaleiro místico, o soberano é o arquétipo do divino, o senhor da "reale­za total".

A Pérsia antiga ignora o culto imperial. Mas seu rei, escolhido pelos deuses, é respeitado como tal. Escutemos Plutarco: "Os povos rendiam grandes honras ao príncipe regente, porque respeitavam nele o caráter de divindade do qual ele era a imagem viva e cujo lugar ele ocupava, tendo subido ao trono pela mão do soberano mestre, e revestido de sua autoridade, para ser com relação a eles o ministro de sua bondade e de sua pro­vidência."

Um respeito religioso

Banido pelos seus e refugiado na Pérsia, o Grego Temístocles pedirá audiência ao rei. Ele ouvirá Artaban explicar os costumes da corte: "O melhor de nossos inúmeros e bons costumes é que honramos o rei, e nos inclinamos diante dele, da mesma forma que diante da imagem do deus que salva o universo."

A proskynese, que confundirá e irritará muito os companheiros de Alexandre quando este decide adotar os costumes aquemênidas, é um cumprimento e um ato de adoração. Prosternação profunda consistindo em se jogar ao chão diante do soberano, ela esclarece o aspecto religioso ligado a sua função.

Dessa ideologia origina-se todo o cerimo­nial: "Quando o rei saía de seu palácio, locomo­via-se de carro ou em seu cavalo, jamais era visto a pé." Ateneu também conta: "Quando fazia suas
refeições, seus convidados não ficavam a sua mesa, ficava separado deles por uma cortina."

Rei de paz com auréola

Essa função religiosa aliada à soberania tem uma repercussão na conduta do rei, sobretu­do no campo de batalha. Na verdade, a ideologia real iraniana oriunda de Yima, primeiro homem e primeiro soberano, um rei solar e portanto de paz. O rei persa não pode, portanto, em princípio, par­ticipar diretamente da guerra.

É num trono elevado, indica Windengren, que Xerxes fiscaliza a batalha de Salamina. É ins­talado em seu carro de guerra que Dario 3 acom­panha o desenrolar dos combates de Isso e de Gaugamela. O que explica os comentários pouco lisonjeiros feitos pelos Gregos.

A cor da função guerreira é o vermelho. E esta portanto a cor do rei. Mas, como a dos sacer­dotes é o branco, um compromisso deve ser adotado para conciliar as duas funções do soberano:

"O grande rei aquemênida usava uma túnica de púrpura com entremeios brancos, e seu ornamen­to de cabeça também era de púrpura com faixas brancas", observará Curtius Rufus.

Obtendo dos deuses sua soberania, o rei é descrito ou representado com uma auréola, como um nimbo em torno da cabeça. Esse sevarnah, fenômeno luminoso, que emana da pessoa do rei, materializa sua sorte, sua riqueza e sua felicida­de. É o atributo natural do cavaleiro radioso.

Uma aristocracia e uma fidelidade

Embora o poder político do rei aquemênida seja considerável, é falso pensar que seja tam­bém ilimitado. O soberano deve contar com sua família e sua corte. Esta última, indica Winden­gren, tomará a forma de uma guarda do corpo: os "Dez Mil Imortais".

Os seis guerreiros nobres que, com Dario, correram os riscos da revolta contra o usurpador Gaumata, desfrutarão assim de privilégios excepcionais. Conselheiros do Grande Rei, com o qual podem ter contato a qualquer momento, estão intimamente associados aos negócios do império:

"Seus conselheiros estavam muito bem instruí­dos sobre a disposição das leis, as sentenças do Estado, os antigos costumes. Seguiam por toda parte o príncipe que não fazia nada e não decidia nenhum negócio importante sem consultá-los."

A autoridade do comando reside na personalidade do rei, mas este leva em consideração as opiniões dos que o cercam, e também dos no­bres que vivem na sua corte. É exatamente o opos­to do déspota oriental que só escuta a si mesmo.

A idéia principal sustentando e conduzindo a política real dos Aquemênidas e também a da fidelidade que estabelece seus elos entre a no­breza persa, a família real, os companheiros de armas e o rei. Esse último pode também delegar uma parte de seus poderes e oferecer a seus feudatários o privilégio de exercer livremente sua autoridade nos territórios do império.

A fidelidade liga também pessoas de raças e religiões diferentes ao "Persa, filho do Persa,
Ariano, de descendência ariana" como gostam de ser chamados os grandes reis aquemênidas. O rei, sem pensar jamais em assimilar seus vassa­los, pode assim, através desse elo, respeitar cada particularismo, e evitar que a suserania persa seja muito opressora. Baseadas na fidelidade, as ten­dências particularistas e feudais, próprias ao Irã antigo, opor-se-ão sempre ao monstruoso siste­ma burocrático e centralizador do antigo mundo oriental.

Satrapias, poder regional

Evitando a asfixia centralizadora, a política real dos Aquemênidas organiza o império com base nas satrapias. O princípio desses governos "regionais", confiados a oficiais reais, já havia sido implantado na Babilônia e na Assíria, porém visava apenas reforçar o autoritarismo dos dés­potas mesopotâmicos. Com os Aquemênidas, afir­ma-se o propósito oposto.

A satrapia persa é uma verdadeira delega­ção de poderes. Ela reconhecia as identidades e as autonomias locais. Cada região conserva sua própria língua, suas leis, seus costumes, sua mo­ral, sua religião e seus deuses, às vezes até mes­mo seus chefes. Assim será na Fenícia, no Egito, na Palestina. Esse modo de ver e de organizar as relações entre o soberano persa e as múltiplas etnias vassalas justifica o título de "rei dos reis" usado pelos soberanos aquemênidas.

O rei persa jamais exige a integração das nações vassalas. "Ariano, filho de Ariano", ele
tem demasiada consciência de sua especificidade étnica para impô-Ia aos povos submissos ao império. Contenta-se em ver o reconhecimento da suserania persa. Esta aliás pode ser apenas uma simples obrigação de fidelidade que se concretiza através do pagamento de um tributo.

A satrapia é construída em torno de um povo específico ou de uma região natural precisa. Às vezes são ligadas a alguns elementos meno­res tais como principados, antigas cidades autô­nomas, pequenas tribos inseridas. O império aque­mênida é portanto amplamente" regionalista".

O número de satrapias variará de 20 a 30, de acordo com a vontade imperial. Heródoto cita­rá 20. A inscrição de Persépolis enumera 24, a de Naqsh-i-Rustem, 28. Esse número chegará a 32.

No início, havia 23 satrapias. Eis a lista:
Fars ou Pérsida; Elam ou Susiana; Caldéia; Assí­ria; Mesopotâmia; Síria; Fenícia e Palestina con­fundidas sob o nome de Arabaia; Egito; os povos do mar: Cilícios e Cipriotas; Jônia ou colônias gregas da Ásia Menor; Lídia e Mísia; Média, Ar­mênia; Katpatuka ou Capadócia; Pártia e Hircânia; Zarangia; Ária; Corasmia; Bactriana; Sogdiana; Gandária; os Saka ou Saces na grande planície da Tartária; os Thatagus ou Satagídios da bacia do Helmend; a Aracósia; os Makas do estreito de Ormuz. Sua distribuição descreve um círculo em torno de Pêrsida, no sentido dos ponteiros do relógio.

Em torno do Sátrapa

O sátrapa ou khchathrapa é nomeado pelo rei, investido de todos os seus poderes. Esse alto dignitário, cujo título permaneceu em nosso voca­bulário muitas vezes com sentido pejorativo, pos­sui sua administração, seu palácio e sua corte. É um verdadeiro vice-rei. Xenofonte diz: "A mes­ma ordem que reinava na corte do rei devia ser proporcionalmente observada nas cortes das satrapias."

O sátrapa governa em nome do rei. Só a ele presta conta de seus atos. Sua missão essen­cial é manter a paz e fazer reinar a justiça entre sua gente. Tem também o encargo de receber os impostos e recrutar tropas para as guerras.

Este vice-rei não está sozinho. Temendo que ele se conduza como um déspota ou dissiden­te, os reis aquemênidas o rodearão de homens seguros e leais, como vimos fazer Dario.

Xenofonte conta: "Quando Giro envia sá­trapas às províncias que havia subjugado, não que­ria que governadores particulares locais, nem ofi­ciais das tropas entretidas pela segurança do país dependessem deles, a fim de que um sátrapa con­vencido de sua grandeza e de suas riquezas, viesse a abusar de sua autoridade, ele encontrava em seu próprio governo testemunhos e censores de sua má conduta."

Outros Persas, cuja fidelidade ao rei é in­falível, rodeiam portanto o sátrapa. Cada satrapia é assim dotada de um escriba real, encarregado da chancelaria, de um general ou karonos que comanda as tropas reais das guarnições.

Esses dois dignitários são independentes do sátrapa. Nomeados pelo rei, só recebem instruções do soberano e de sua corte. O escriba per­mite que o rei esteja totalmente informado sobre as atitudes do sátrapa e do general. Alguns outros oficiais são encarregados de postos autônomos: governador da fortaleza ou argapat, guardião do tesouro.

Pode também acontecer que um parente próximo do rei, ou general de confiança, seja chamado para exercer uma autoridade superior englobando várias satrapias.

“Os olhos e ouvidos do rei”

O sátrapa tem inteira responsabilidade pelo seu território. Tem total liberdade de ação A autoridade real exerce-se simplesmente através do controle das iniciativas, a posterior; escolhido pelo rei, entre os grandes do império, comissários vão pessoalmente visitar as províncias.

Heródoto define assim a missão desses enviados: "Reprimir os movimentos de revolta, impedir as injustiças e violências dos magistra­dos, romper absolutamente com tudo que é feito contra a ordem e as regras, em uma palavra, levar a toda parte uma influência salutar, ouvir tudo, sem rejeitar nenhuma queixa ou súplica."

Chamados de “olhos e ouvidos do rei”, esses funcionários devem prestar contas da si­tuação particular de cada satrapia. Seu crédito é grande. Com base na fé de seus relatos, a corte real toma decisões.

Reforçado por Daria, no dia seguinte às primeiras revoltas, esse controle efetua-se sem piedade. Assim, Oroites da Lídia, que trama sua independência, é morto por seus próprios solda­dos, por ordem de Bagadeus que se apresenta como homem de confiança do rei.

Alguns autores consideraram-nos como uma organização análoga a dos missi dominici de Carlos Magno. Mas a tarefa desses conselheiros ou comissários não se resume a um controle polí­tico. Leva ao soberano aquemênida todo conheci­mento útil sobre o andamento de seu império. E, embora esses comissários se interessem pela política, pela justiça, pelas finanças, permitindo assim que seja mantida a realeza persa, inquie­tam-se também com o progresso econômico, e a qualidade de vida: a limpeza das cidades, o con­forto das habitações, a manutenção das vias de comunicação.

Baseado em suas pesquisas, o rei pode fazer reclamações ou elogios. Assim Daria, in­formado por seu homem de confiança, pode es­crever a Gádatas, sátrapa de Magnésia: "Quando cultivas cuidadosamente minhas terras, e planta árvores frutíferas no sul da Ásia, elogio tua inten­ção e isto te vale muita gratidão junto à casa do rei. "

Respeito aos particularismos

O sistema satrápico permite, é verdade, a presença eficaz e durável da administração, assim como a defesa dos interesses persas e reais. Mas essa administração, dissemos, não é a expressão de uma centralização autoritária.

O sátrapa dispõe de uma real autonomia de governo. Emprega seu poder dentro do espírito e da lógica dos Persas: organiza, desenvolve e protege. Se o tributo é às vezes caro para os povos submissos, o sátrapa procura manter a paz entre os vassalos e reprimir a pilhagem. Mantém a segurança nas estradas e protege a agricultura. A paz aquemênida é um fator de prosperidade de­cisivo para os povos que viviam até então num estado constante de guerra. A administração satrápica também não é a expressão de uma concepção de totalitarismo. Embora seja certamente muito forte falar em um federalismo persa, é incontestável que o império aquemênida apresenta uma desconcentração mui­to liberal. E isso fará com que colha frutos bene­ficiando-se com um clima de paz interior que o mundo oriental jamais conhecera.

Graças ao respeito aos particularismos, os povos continuam a viver de acordo com seus costumes. A justiça dos sátrapas considera leis es­pecíficas a seus povos. As religiões e os deuses não são exceções.

Proteção ativa aos cultos estrangeiros

Ciro inaugura a política persa de tolerância religiosa e prova ter um espírito de ajuda ativa com relação aos cultos estrangeiros na Pérsia. Dario agirá da mesma forma. Graças a ele, os
Judeus que não puderam conduzir satisfatoria­mente a reconstrução do templo de Jerusalém devido à perturbação provocada pelos Samaritanos, poderão concluí-la, sendo as despesas pagas pelo Grande Rei. O édito de Dario, que se tornou famoso, proclama:

“Eis portanto, Tattenai, governador de Abarnahara, Satrbozenai e seus colegas, os investigadores estão em Abarnahara: permaneçam à dis­tância, dêem toda liberdade ao governador dos Judeus e aos antigos Judeus para o trabalho nes­se templo: podem construí-lo no seu local.

E a ordem é dada por mim, pela presente, incluindo o modo como devem agir com os antigos Judeus com relação à construção desse templo: as despesas devem ser abatidas integralmente dos lucros do rei graças aos impostos da provín­cia de Abarnahara, para que os trabalhos não sejam interrompidos; assim como as coisas neces­sárias, a saber, touros jovens, carneiros e ovelhas para oferecer sacrifícios ao deus do céu. Segundo seus pedidos, serão dados aos sacerdotes de Je­rusalém, dia após dia, trigo, sal e óleo, sem negli­gência, para que ofereçam ao deus do céu sacri­fícios de perfume e rezem pela vida do rei e de seus filhos.

E ordenei também que se alguém não respeitar esse edito, seja arrancada uma viga de sua casa, e que seja empalado; e mais, sua casa será reduzida a um amontoado de escombros. E que o deus que faz seu nome habitar lá derrube todo rei e todo povo que estender a mão para agir de modo diferente, a fim de destruir esse templo de Jerusalém!

Eu, Dario, dei essa ordem. Que seja exe­cutada integralmente!"

Outros documentos atestam a proteção aquemênida que beneficia os cultos estrangeiros na Pérsia. Assim, na seqüência de sua carta a Gádatas, Dario acrescenta reprovações aos elo­gios. Reprova o sátrapa por ter imposto taxas aos que cultivam as terras consagradas a Apoio, forçando-os assim a trabalhar terras profanas: li Com isso, desprezas os sentimentos de meus ances­trais com relação a esse deus, que sempre disse aos Persas somente a verdade."

Vemo-lo, respeitoso com relação aos deu­ses estrangeiros, protetor de seus cultos, dos quais participa a seu modo, o rei aquemênida proí­be qualquer repressão religiosa ou proselitismo. Ainda aí, é a consciência da especificidade do Persa e do Ariano que faz com que procure a harmonia dentro da diversidade.

MOURREAU, J. A Pérsia dos Grandes Reis e de Zoroastro. Rio de Janeiro: Otto Pierre, 1979.

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