Suméria - O Estado e a Religião

Digamo-lo desde já: é quase impos­sível traçar a evolução sócio-econô­mica dos povos mesopotâmicos, da mesma forma que o desenvolvimen­to dos acontecimentos históricos que a ela se referem. O fato pode parecer paradoxal, visto que três quartos dos textos sumérios-acadianos tratam, como observa­mos, de questões econômicas e administrativas. Abundância ilusória. Com efeito, esses textos não oferecem nunca uma descrição de conjunto, e ainda menos uma análise de situação: trata-se sobretudo de "carnês" de contabilidade prepara­dos para os responsáveis dos templos, adminis­tradores e contramestres. Além disso, estes tex­tos embrionários não cobrem de forma homogê­nea todo o período histórico que nos interessa: o III milênio. Tal época ou tal cidade revela-se prolífica; outras, de todo, estéreis. Há pois des­continuidade na documentação, simultaneamente no tempo e no espaço.

O retrato" da civilização mesopotâmica do decurso deste III milênio que vamos tentar esboçar em grandes linhas será, portanto, forço­samente lacunar e nebuloso, levando em conta o estado dos nossos conhecimentos.

Em um primeiro tempo, procuraremos de­limitar a concepção de poder político no interior das cidades e precisar as modalidades de exer­cício, salientando em especial as estruturas do aparelho administrativo. Em seguida, examinare­mos a sociedade mesopotâmica propriamente di­ta, os seus diversos componentes e as suas liga­ções. Enfim, completaremos o quadro com um resumo das relações dos homens e do meio, rela­ções que determinaram as suas atividades eco­nômicas.

O deus é o proprietário de tudo

Quando apareceram as primeiras cidades mesopotâmicas, toda a vida política, econômica, social e cultural do país se concentrava nos tem­plos. O templo era o centro total da comunidade, exemplo único na história humana.

Este fenômeno é devido à natureza parti­cular do lugar de culto sumério. Ele é, por exce­lência, a "casa do deus" da comunidade; ora, a crença religiosa atribuía a este deus a proprie­dade exclusiva de tudo o que existia e vivia no perímetro que ele controlava: os homens, os ani­mais selvagens ou domésticos, os vegetais, os minerais, a terra e a água. O deus era, no sentido mais amplo, o proprietário da cidade e das suas dependências.

Não é pois surpreendente que, por esse fato, o grande-sacerdote, que era o representante mortal do deus, tenha sido cercado, desde a ori­gem, de um respeito ilimitado e objeto de uma obediência total: todas as suas ações, mesmo profanas, eram consideradas como tendo sido inspiradas pelo deus-proprietário. Observa-se, no­temo-lo, algumas semelhanças entre esta orga­nização primitiva mesopotâmica e a dos antigos Incas.

Este deus onipresente mantinha relações privilegiadas com o seu povo por intermédio do
grande-sacerdote. Protegia-o contra os maus espí­ritos, satisfazia por vezes os seus pedidos, e sempre "assalariava" o trabalho dos homens, atribuindo-lhes uma parte do produto arrancado à terra com o seu esforço, produto que teorica­mente lhes pertencia por inteiro. Enfim, eles os convidava para as suas festas.

A arquitetura religiosa reflete perfeitamen­te este esquema. Desde o IV milênio que no cen­tro da cidade uma construção de dimensões co­lossais, o templo, domina com a sua massa de tijolo a espécie de "favela" que constituem as miseráveis habitações dos homens. Mais tarde, casas de tijolo substituirão a cabana e se com­primirão ao longo das ruelas tortuosas à volta do templo. Muito mais tarde ainda, uma outra construção - o palácio - de dimensões imponen­tes, ainda que inferiores às do templo, erguerá a sua silhueta maciça cercada das primeiras casas burguesas ou principescas: a política e a prospe­ridade terão talhado, à sua maneira, a imagem da cidade mesopotâmica.

O templo: todas as funções

Os primeiros templos acumulavam pois to­das as funções: o temenos reunia todas as ati­vidades em um mesmo espaço. Mas quando se penetra nele, constata-se que os dois pólos da vida foram cuidadosamente separados: de um lado o "bairro" do deus, com a sua cela, conjunto de peças cujo acesso é rigorosamente regulamen­tado; do outro o "bairro" profano. Aqui é uma se­qüência impressionante de salas especializadas: depósitos, entrepostos, salas de espera, escritó­rios de recepção, salas de entrega, lugares de re­pouso, etc.

O estudo da arquitetura de certos templos arcaicos revela, além disso, que estes lugares formavam uma rede de solidariedade entre os di­ferentes ramos da atividade econômica: cada um tinha o seu "escritório permanente" e pode-se imaginar que os seus funcionários mantinham la­ços tanto mais estreitos, quanto a interdependên­cia das seções de cada profissão era muito forte.

O espetáculo que se desenrolava perma­nentemente no recinto dos templos devia ser al­tamente colorido. Tudo desperta desde a aurora. Os pastores conduzem para o campo os seus re­banhos desnorteados, no meio de uma nuvem de poeira e de barulho. Depois chegam os pescado­res pesadamente carregados com as suas redes e peixes. Agora os empregados encarregados dos sacrifícios divinos; as mercadorias chegam: leite e queijos, farinha, cerveja, vestuário, artigos de artesanato etc. No meio desta barafunda, as vo­zes dominantes são as dos escribas que, de pla
quinha e estilete nas mãos, o olho atento, anotam tudo. Só depois do pôr do sol, o silêncio, entrecortado pelo zurrar dos burros e dos onagros, cai sobre a cidade esgotada.

....incluindo o amor funcionário

A esta tumultuosa atividade só escapavam alguns raros funcionários: os sábios encerrados na semi-obscuridade da biblioteca (cada templo tinha uma); os altos funcionários que controlavam intermináveis listas; e talvez as hierodulas fun­cionárias da deusa do amor. O grande-sacerdote do deus da cidade devia praticar o ritual da hiero­gamia, casamento com a grande-sacerdotisa de Innana, materializando o casamento entre os deu­ses, de que dependia a prosperidade dos humanos. Quanto às hierodulas subalternas, estavam à dis­posição dos crentes, mediante pagamento, é cla­ro: certamente o povo não devia negligenciar este ritual, porque os recursos que o templo obtinha graças às "jovens do Amor" estavam longe de ser desprezíveis. Na Suméria havia, em suma, um "bordel" divino.

Acrescentemos que o templo era também o centro da justiça, do notariado, da escola e da "universidade", da adivinhação, dos oráculos e dos funerais, enfim, o lugar onde o povo verdadeiramente na sua totalidade ia, trabalhava, vivia, morria.

Instituições “democráticas”...

A organização sócio-política que transpa­rece através desta descrição é nitidamente do tipo teocrático e "comunista", dissemos. O que nós ignoramos, e que é essencial, é o regime e a repartição dos poderes políticos. Nenhum texto foi encontrado falando diretamente deles. Contudo, os sumerólogos estudaram minuciosamente certos textos e propuseram, senão uma explica­ção, pelo menos hipóteses plausíveis. É partindo da análise de textos épicos e mitológicos que é possível reconstituir o tipo de regime político cor­rente na Suméria: as instituições divinas descritas nestes textos seriam uma transposição das instituições terrestres. Também na Grécia o estu­do da mitologia conseguiu parcialmente confir­mar os dados históricos e arqueológicos, o que levaria a dar crédito a este gênero de extra­polação.

As cidades-Estado sumérias parecem assim ter vivido sob um regime de "democracia primitiva". A noção de "democracia" usada aqui não é em nada comparável ao conceito que temos hoje, nem mesmo com o dos Gregos. Na épo­ca antiga suméria, as funções governamentais eram pouco especializadas, o poder restrito e a administração quase inexistente; o que limita muito o exercício do poder. O controle da ação do “governo", que é o fundamento da nossa de­mocracia, era pois uma necessidade menos im­periosa.

Segundo alguns sumerólogos, os mitos arcaicos mostram que a autoridade suprema, a soberania, residia na assembléia geral dos cida­dãos. Os debates eram dirigidos por um chefe ­na mitologia trata-se do deus An - e as decisões tomadas por votos tinham força de lei, uma vez promulgadas formalmente por uma comissão res­trita de sete pessoas, designadas como os sete deuses legisladores. Podia-se convocar a assem­bléia para deliberar sobre qualquer assunto que interessasse à coletividade: delito, crime, proble­ma político interno, guerra. Porém, a assembléia usava de diferentes processos, conforme os ca­sos. Quando se tratasse de delito ou de crime, erigia-se em corte de justiça. Se devia debater um assunto interno (trabalhos públicos, repres­são ao banditismo), delegava os seus poderes a um sábio, o en, cujas atividades organizadoras e administrativas estão provadas. Em caso de guer­ra, escolhia-se por um tempo determinado um chefe dos exércitos, homem de ascendência nobre e rico, a fim de que pudesse recrutar tropas pessoais.

...ou antes simples assembléias consultivas?

Este esquema, também observamos, foi contestado por outros especialistas. As críticas destes recaem sobre pontos muitas vezes essen­ciais. Baseando-se também na mitologia, eles acham que o exemplo da assembléia dos deuses mostra antes uma "assembléia de registro": os deuses apenas homologavam as decisões dos seus chefes. Por vezes estes últimos nem se preocupam com o acordo dos seus subalternos. Assim, na narrativa da queda de Ur, aparentemen­te é a assembléia dos deuses que tomou a deci­são soberana de retirar a realeza a Ur; mas de fato, ela nem sequer reagiu à decisão tomada an­teriormente por Anu e Enlil de esmagar Ur, o que leva a pensar que a retirada da realeza a esta cidade foi decidida de forma unilateral pelos dois chefes dos deuses e que eles a impuseram. Trans­posto para o plano terrestre, este debate e esta crítica levam a interrogar-se: a assembléia sumé­ria tinha realmente o poder de investir um rei e eventualmente de o demitir? A mitologia proporia uma resposta negativa.

Um outro texto foi objeto de análises “constitucionais" minuciosas: a Epopéia de GiIgamesh. Recordemos que, nesta Epopéia, o rei de Uruk tinha convocado a assembléia dos Anciãos para responder ao ultimato que o soberano de Kish acabava de lhe enviar. Gilgamesh não quer submeter-se; mas a assembléia não o acompa­nha. Então ele convoca a assembléia do povo, de fato, os Jovens, que o apóiam. Legitimado de cer­ta forma pela segunda assembléia, Gilgamesh pode então opor-se a Kish.

O debate entre os estudiosos, sobre as instituições sumérias, apenas começa. Uma tendência limédia" já se revelou. Para ela, a assembléia suméria não era um órgão de controle, e menos ainda de comando, mas uma comissão consultiva, talvez comparável à djemâa de certas tribos nômades do Oriente Próximo contemporâneo.

A administração das cidades sumérias

De qualquer forma esta instituição lirepresentativa" teve que ceder amplamente as suas prerrogativas quando se consolidou o poder monárquico, a partir do III milênio. Quando a separação do altar e do trono se consumou, o movimento que terminará no absolutismo será irreversível. Verifica-se bem isso através da nova repartição das riquezas: primeiro timidamente, o território real não pára de estender-se ao ponto de "morder" no do templo. O fenômeno precipita­-se no final do século XXI: entra-se então em uma fase de desmantelamento dos bens dos deuses; as terras pertencentes aos templos se secula­rizam.

Um outro domínio do exercício do poder fornece indicações precisas sobre a vida política na Mesopotâmia: a administração das cidades­-Estado, depois dos impérios. Numerosos do­cumentos administrativos (20.000 plaquinhas só para o período de Ur III) foram encontrados. Se nenhuma levanta o que se chamaria de organo­grama administrativo da Suméria, pôde-se recons­tituir o que teria sido a hierarquia da função pú­blica, comparando os salários dos funcionários mencionados.

Assim, em Shuruppak, o personagem mais altamente colocado depois do ensi chamava-se sanga. Era o administrador do templo. Tinha sob as suas ordens fiscais (nubanda) que agiam tam­bém como verdadeiros substitutos. Estes dirigiam por sua vez representantes (agrig). O ensi tinha também um chefe de cadastro (sadu) e uma espécie de ministro das Finanças ou de contabilida­de (shadubba). Numerosos correios (sukkal) se ocupavam do departamento do Interior e do das Comunicações. Além disso, a nomenclatura men­ciona copeiros reais (sagi), conselheiros (abgal),
comissários, provavelmente função intermitente (mashkim), assim como todo um exército de fiscais (ugula), arautos (mingir), contramestres do ensi (ensi-gar), ou do sanga (sangagar). Todos estes funcionários constituíam a alta e média administração.

Mais tarde foram criadas novas funções nas cidades-Estado, à medida que aumentavam as suas riquezas. É assim que em Lagash, sob o rei­nado de Urukagina, o serviço de estocagem da produção se divide em dois ramos, indicando cla­ramente um crescimento das quantidades de mer­cadoria e da mão-de-obra. Agora um kaguru tem o controle dos celeiros, enquanto que as oleagi­nosas são colocadas sob a vigilância de um kashagan.

Nesta mesma época opera-se uma mudan­ça impressionante, pela sua rapidez e a amplidão. O nubanda (fiscal) de Lagash torna-se o principal funcionário do Estado, “ao mesmo tempo o organizador das empresas de interesse público e dos trabalhos agrícolas, o tesoureiro do rei, o econo­mista do palácio e o tabelião de todos". Verda­deiro homem-orquestra, ele preside a todas as atividades: perfuração e drenagem dos canais, re­partição da mão-de-obra, abono das sementes, distribuição das terras de que ele supervisiona a preparação. estocagem das colheitas, pagamento dos empregados do templo, licitação e conclusão dos contratos de venda, etc.

A Administração do Império

Quando Sargão instaura o império, intervêm novas mudanças administrativas. Natural­mente o papel do nubanda, compatível com as dimensões restritas de uma cidade-Estado, dá lu­gar a novas funções adaptadas à amplitude da administração imperial. Sargão introduz um co­mando militar provincial confiado a um shagin e cria um corpo de prefeitos, os shabra.

Sob a III dinastia de Ur, o poder do Estado reforça-se ainda mais. Agora coexistem duas administrações: uma estabelecida nos templos e orientada sobre a produção dos bens; a outra diretamente ligada ao palácio, compreendendo um pessoal de quadros superiores e também de empregados encarregados dos domínios reais.

À frente do Estado estava o rei. O seu colaborador imediato era o sukkalmah. Este perso­nagem desempenhava as funções de primeiro­-ministro de Estado e de ministro do Interior. Controlava diretamente o corpo dos sukkal, que apenas tinham a missão de “correios". Eles dis­punham com efeito de vastos poderes, tanto militares como civis, o que lhes permitia intervir nos assuntos das províncias e coordenar a ação governamental neste nível. Eles eram, além disso, encarregados dos serviços de informação.

As províncias eram governadas por altos funcionários designados pelo rei: o ensi, que era a mais alta autoridade civil; o shagin, que além do comando militar tinha poderes civis. A funcão de ensi tornou-se pouco a pouco um cargo aluga­do, que se podia comprar e transmitir, como um escritório de tabelião nos nossos dias, ou então como o cargo de fazendeiro-geral no Antigo Regime na França. O ensi e o shagin - acontecia ser uma só pessoa - tinham sob as suas ordens uma administração provincial calcada sobre a da capital.

Milícia popular, depois exército profissional

A evolução da instituição militar seguiu um caminho paralelo ao da administração. No começo todos os cidadãos da cidade que podiam usar armas constituíam uma espécie de milícia popular sempre pronta a ser mobilizada quando a situação se agravava ou o ensi o decretava. Houve contudo guardas permanentes nos tem­plos. Textos encontrados em Shuruppak atestam já a criação de um exército mais guarnecido: 700 homens e algumas dezenas de carros.

Um pouco mais tarde, a “Estela dos Abu­tres" oferece-nos uma imagem visual e certamen­te exata deste exército sumério. Ele apresenta-se em falanges compactas; os soldados usam um capacete cônico e um grande escudo retangular de pele, semeado de "pregos de bronze", o que os protege dos tornozelos até o queixo; estão armados com lanças compridas. [...] A hierarquia militar compunha-se da seguinte forma: no alto o comandante-em-chefe, o shagin, que tinha sob as suas ordens oficiais superiores, os ugula; estes comandavam subalternos, os nubanda; depois che­gava o chefe da tropa, o agaush. Talvez tenham existido graus intermediários...

Depois da reforma de Ur-Nammu, que restabelecia a tradição sargônica dos corpos de arqueiros, houve três grandes corpos militares: os carros, os soldados de infantaria pesada e as unidades ligeiras armadas com lanças e arcos. Os oficiais usavam acha-d'armas, que fazia as vezes de divisas. Finalmente o uso de porta-bandeira à frente dos exércitos deve remontar a uma época muito antiga, visto que é atestada em vários do­cumentos.

O recrutamento dos soldados de profissão seria feito na classe de homens de condição não escrava, mas não gozando de uma total liberdade. É possível que os descendentes de antigos prisioneiros de guerra tenham fornecido alguns con­tingentes.

Em período de guerra, teoricamente todos os homens válidos eram incorporados. Havia con­tudo isenções em benefício de certos funcioná­rios dos templos (sacerdotes, escribas, intenden­tes, cervejeiros, cozinheiros e comerciantes): pelo menos os seus nomes não aparecem nas lis­tas de recrutamento decifradas até hoje.

Em período de paz é provável que os oficiais participassem da vida econômica do país, quer empregando-se nos canteiros de obras, quer como “homens de negócios". É o que levariam a crer várias estatuetas votivas cujas inscrições mostram que eram dedicadas por militares a um deus ou ao rei. Ora o soldo de oficial não devia ultrapassar o salário do funcionário médio, o que exclui toda a possibilidade de adquirir objetos de arte. Deduz-se daí que estes oficiais tinham ou­tras fontes de renda além do seu soldo.

Os códigos

Antes do "código" de Ur-Nammu, a Sumé­ria não tinha criado nenhuma lei civil escrita que regulamentasse as relações sociais. Devia existir assim mesmo um direito, talvez variável confor­me as cidades, mas em vigor há muito tempo e enriquecido por uma jurisprudência secular. Não se poderia compreender o desenvolvimento tão extraordinário da civilização na Mesopotâmia fora do quadro de uma lei respeitada e fundada sobre a moral. É provável, contudo, que a "lei" suméria não procedesse de princípios gerais e universais, mas de casos específicos: seria a prática, a juris­prudência, que teriam fundado um conjunto de regras judiciárias sem ligação abstrata entre si.

Os documentos relacionados com isso não exis­tem, mas pode-se imaginar que vão aparecer mais cedo ou mais tarde.

Muito antes da promulgação do famoso có­digo de Hamurabi - cuja inspiração sumério-aca­diana é, aliás, flagrante - um dos sucessores de Ishbi-Erra no trono de Isin, Rei Lipit-Ishtar (1934­1924), tinha igualmente editado um código. Pelo fato de a dinastia de Isin se ter considerado a continuadora da III dinastia de Ur, para a queda da qual ela tinha amplamente contribuído, pode­se ter como certa a filiação entre este código e o de Ur-Nammu, que datava já de mais de um século e meio. De resto, o código de Lipit-Ishtar estava escrito em língua suméria sobre uma pla­quinha e não sobre uma estela. O que tende a salientar a "banalidade". Comportava um prólogo, seguido de um grande número de leis, 37 das quais puderam ser reconstituídas.

Quanto ao código de Ur-Nammu (cerca de 2100), igualmente encontrado sobre plaquinhas, apenas possuímos cópias bastante danificadas, cujo texto é de leitura muito difícil. O código co­meça por um prólogo em que se conta que, de­pois da criação do mundo e da Suméria, os deu­ses criaram a cidade de Ur, cuja coroa real foi atribuída ao deus Nanna (a Lua). Este nomeou Ur­Nammu como seu representante terrestre para reinar sobre Ur e a Suméria. O soberano humano tomou então as medidas necessárias para garan­tir a ordem no país. Atacou o rei de Lagash, dema­siado ambicioso, e condenou-o à morte. Termina­do este trabalho de polícia militar, ele consagrou­-se às reformas urgentes que uma situação social econômica e moral catastrófica exigia. Ur-Nammu desembaraçou o país de todos os parasitas so­ciais, os "rapaces", como diz o texto, e decretou a sua augusta proteção sobre as viúvas e os ór­fãos, contra os poderosos e os ricos.

Um parentesco profundo com as leis modernas

Este longo prólogo era seguido de uma passagem danificada que justificava as leis cujo texto vinha depois. Infelizmente este texto sofreu de tal modo as agressões do tempo, que só cinco leis puderam ser lidas com bastante exatidão. Duas delas apresentam um interesse secundário. "Mas as outras três", escreve o tradutor, S. N. Kramer, “por mais fragmentárias e pouco legíveis que estejam” são de uma importância muito par­ticular para a história do desenvolvimento social e espiritual do homem: elas mostram, com efeito, que mesmo 2.000 anos a.C., a lei de ferro 'olho por olho dente por dente', que prevalecia ainda em larga medida entre os Hebreus, em uma época muito mais tardia, [...]

Uma estrutura familiar muito firme

[...] Como tudo o que a Suméria criou, a famí­lia era com efeito regida por leis e costumes mui­to firmes. O chefe de família, o pater familias gozava, no seio da célula de base, de um status comparável ao do grande-sacerdote na cidade, ou do rei no país. Ele governava tudo, sem limites. Tinha mesmo o direito de vender os seus filhos como escravos, sem ter que prestar contas.

Em uma tal sociedade era natural que a posição da mulher fosse inferior à do homem. A prova é esta lei que fixava o regulamento de al­guns conflitos matrimoniais:

"Se uma mulher diz a seu marido que de­testa: 'Tu não és meu marido!', deve-se jogá-la no rio! Se um marido diz à sua mulher: 'Tu não és minha mulher!', ele deve pagar meia mina de prata!"

Dois pesos, duas medidas. Contudo a mulher mesopotâmica estava longe de ser despre­zada. Nunca se repetirá demais o quanto a socie­dade dos homens era copiada sobre a dos deuses. Ora, o panteão mesopotâmico transborda de deu­sas de todas as categorias, desde a "grande-geradora" até a infeliz empregada em lágrimas. E estas deusas, pelo menos as mais importantes, eram objeto de cultos devocionais.

A mãe honrada

Além disso parece ter sido venerada, na mulher, acima de tudo, a sua função de mãe. Uma "lei" que sugere bastante bem o que podia ser este respeito devido à mãe: "Se um filho declara à mãe: 'Tu não és minha mãe!', deve-se cortar-lhe os anéis de cabelo (raspar-lhe a cabeça) em sinal de servidão, passeá-lo pela cidade e depois ex­pulsá-lo de casa."

Parece também que a mulher-mãe pode por vezes substituir o homem em todas as suas fun­ções de chefe de família. É assim que uma viúva tinha o direito de vender o seu filho como escra­vo... As "minutas" de um processo que teve lu­gar em Lagash atestam-no formalmente:

"Etamuzu, filha de Luutu, tinha sido com­prada a sua mãe, Atu, mulher de Luutu, pelo cozi­nheiro Urshugalama, pelo preço de 4,5 sekels de prata. Mas um dia Etamuzu revoltou-se contra o seu novo senhor e disse-lhe: 'Eu não sou tua es­crava!' Ora, a venda tinha-se desenrolado na pre­sença de duas testemunhas: Urbala, o jardineiro, e Igltur, que o confirmaram diante do tribunal. Urshugalama levou o caso à justiça. A mãe, Atu, mulher de Luutu, foi convocada e reconheceu os fatos diante do queixoso e do príncipe da cidade."

De resto, a mulher mesopotâmica da época antiga era talvez mais livre do que o foram al­gumas das suas descendentes. Cita-se muitas ve­zes o caso de uma famosa proprietária de cabaré chamada Kubaba: a lista real da Suméria afirma que ela conseguiu subir ao trono de Kish, por pouco tempo, é verdade. Uma outra, que era es­posa do Rei Lugalanda, lançou-se nos" negócios" e construiu assim uma das mais colossais fortu­nas do reino...

Os cidadãos livres

A posição da mulher variava, aliás, confor­me o seu nascimento, tal como a posição do homem. A sociedade mesopotâmica foi, desde sempre, dividida em duas categorias: os homens e mulheres livres, e os escravos; ainda que esta divisão de ordem jurídica não reflita a situação real que prevalecia no decorrer do III milênio.

Até ao surgimento da III dinastia de Ur, a categoria dos homens livres tinha permanecido homogênea. Mas a partir do século XXII esta categoria divide-se: aparece um grupo de condição inferior à dos homens livres que, contudo, não cai na condição escrava. Esta classe, indefinida juridicamente, é, a dos eren. Constituída por homens de origens diversas, forma o grupo regularmente requisitado pelo rei para os trabalhos mais varia­dos: agricultura, engenharia rural, transporte, exército. Os eren não podiam deslocar-se livre­mente. Os seus grupos, comandados por um shagin ou um ensi, eram estreitamente vigiados e viviam à margem da sociedade. Parece que estes homens semi-livres, pelo menos um certo número deles, eram, na origem, homens livres que tinham cometido delitos graves.

Duas classes de escravos

No começo do III milênio, só os templos e os palácios eram proprietários de escravos. Distinguiam-se materialmente dos cidadãos livres raspando-Ihes a cabeça; e devem ter existido ou­tras marcas exteriores de servidão. Considerados como seres humanos e não como coisas, como foi o caso em Roma, por exemplo, os escravos dos primeiros tempos sumérios tinham mesmo certos privilégios. E quando a propriedade de es­cravos se "democratizou", a sua sorte melhorou. Viu-se gente de condição servil recuperar a liber­dade graças a um feliz arranjo matrimonial. Con­tudo o cidadão livre conservava a sua superiori­dade: não corria o risco de uma multa, se por infelicidade matava o seu escravo...

Além disso a classe dos escravos também era variada, comportando de fato dois subgrupos: os que se designavam sob o nome de ir ou gemê e os namra. Os primeiros estavam mais próximos da condição de "criados" que a dos escravos no sentido em que eram tomados na Grécia e Roma. Os seus senhores empregavam-nos em tarefas comuns, familiares: trabalhos no campo e em casa. Estes gemê, não tinham pois muito que in­vejar aos camponeses reputados livres, mas de fato submetidos a um sistema econômico bastan­te rígido. Tanto mais que o seu estatuto jurídico
era aberto: eles podiam desposar pessoas de condição livre, possuir bens e mesmo ser testemunhas em justiça, dispondo praticamente de personalidade jurídica. Estes gemê, e isto explica muitas coisas, eram, ou homens anteriormente li­vres condenados por delitos menores pelos tribu­nais, ou homens que se tinham vendido como es­cravos em razão das suas dificuldades econômi­cas, ou, enfim, crianças vendidas pelos seus pais.

Os namra eram os verdadeiros escravos: recrutavam-se entre os prisioneiros de guerra e os civis deportados durante uma expedição mi­litar ao estrangeiro. Os Elamitas, os Gutis e os Lulubis constituíam a reserva de escravos da Su­méria e de Acad, e muitas guerras só tiveram como motivo consegui-los. Os namra eram encer­rados em grupos de eren (onde se misturavam os condenados da justiça mesopotâmicos, como vi­mos), sob a vigilância de um shagin. Todas as grandes obras (construção de templos, perfura­ção de canais, construção de estradas etc.) fo­ram realizadas ao preço do seu suor. Os castigos corporais eram correntes para eles.

O preço de um escravo variou muito atra­vés dos tempos. No período pré-sargônico o pre­ço médio era de 18 si cios (1) de prata (com um siclo podia-se comprar 300 silas (2) de cevada) [
(1) Um siclo de prata contém oito gramas deste metal. (2) Um sila vale 0,84 litros. ]; sob o império acadiano, era de 20 siclos; atingiu 30 siclos no final de Ur III.

O Mundo rural, ralé da população

Ainda que a especialização profissional fosse adquirida muito cedo, a sociedade mesopo­tâmica não apresentou uma estrutura econômica de tipo piramidal senão no começo do II milênio. Durante séculos, com efeito, a estratificação so­cial era mais de natureza política e jurídica que econômica. Só no momento em que o Estado se impôs, com o império Acadiano e sobretudo a III dinastia de Ur, é que as classes socio-econô­micas apareceram. Até aí uma massa inumerável e pobre, composta de camponeses e outras pro­fissões de nível econômico comparável, era dominada por uma oligarquia de sacerdotes e de famílias principescas, não constituindo propriamente uma classe.

Por volta do ano 2000 a.C. a pirâmide so­cial diversificou-se. No alto, encontram-se as fa­mílias reinantes e os grandes-sacerdotes; com o desenvolvimento demográfico natural, esta "clas­se" lentamente se ampliou. No escalão abaixo apareceu uma classe média: compreende os funcionários do Estado e dos templos (quadros admi­nistrativos, corpos de profissões
tais como escribas, ferreiros, artesãos, etc.), e esta faixa da população cujo poder econômico não pára de crescer: os comerciantes. Na base, enfim, subsiste a massa dos camponeses cujo nível de vida, para os mais pobres, mal se distin­gue do dos escravos.

Estes camponeses constituíram desde sempre a ralé da população mesopotâmica. Con­tudo eles foram os artífices e mesmo os únicos autores da prosperidade do país. Foram eles que forneceram, no começo, a mão-de-obra para a construção dos templos e dos canais. Foram eles que forneceram aos ensis e aos reis os contin­gentes militares necessários à defesa das cida­des e dos impérios, ou à realização das suas ambições territoriais. Foram enfim estes campo­neses que produziram a principal riqueza do país, a que alimentava o comércio exterior: cereais, óleo, carne, lã. Com efeito, na origem, a parte que provinha do artesanato na "produção nacional" era negligenciável. Ela só adquiriu um certo peso no dia em que o industrioso povo mesopotâmico resolveu importar as matérias-primas, trabalhá-­las e depois exportá-las sob a forma de produtos acabados. Este estágio econômico só foi atingido tardiamente e ainda assim graças aos exceden­tes da produção agrícola, o que supõe ou uma melhoria da produtividade, ou uma extensão das terras cultivadas, ou os dois fenômenos ao mesmo tempo, em qualquer dos casos, um esforço maior dos camponeses.

O regime das terras

A condição de camponês dependia do seu estatuto social. Vimos que, no começo da história suméria, a terra era propriedade exclusiva do deus da cidade, logo do templo: o camponês era então um simples empregado "pago", por meio de um adiantamento sobre a sua própria produção, sem dúvida apenas suficiente para lhe per­mitir sobreviver. Este regime evoluiu para uma secularização das propriedades eclesiásticas, mas a documentação não permite ainda esboçar um quadro preciso desta evolução. No máximo dispomos de algumas referências, de quando em quando.

Assim, um texto datando do reinado de Enhegal de Lagash (século XXVII) informa-nos que existiam então dois tipos de propriedades: pro­priedades "privadas", pertencendo a altos funcionários, de áreas consideráveis; e pequenas pro­priedades arrendadas pelos templos a particulares. Este mesmo texto anotava a compra, pelo rei, de propriedades de uma superfície de mil hec­tares, que pertenciam a funcionários ou a coleti­vidades (tribos).

Sempre em Lagash, uma outra inscrição datando do século XXV dá melhores informações sobre os domínios de um templo, o de Bawa. Estes domínios se estendiam por cerca de 4.500 hectares. Uma parte (1.000 hectares?) era explo­rada para as necessidades do culto; uma outra era destinada à subsistência do pessoal do tem­plo; o resto era arrendado a particulares à taxa de um sétimo ou um oitavo da colheita. Nesta época o palácio dispunha igualmente de domínios, alguns dos quais tinham sido retirados das pro­priedades dos templos; e de qualquer forma a administração dos domínios dos templos perten­cia à casa real.

É uma situação muito diferente que nos re­velam as plaquinhas de Shuruppak. Aqui a terra é fragmentada em pequenas parcelas, raramente excedendo quatro hectares. Os proprietários são em geral funcionários, por vezes comerciantes e artesãos.

Encontrou-se também um tipo de proprie­dade que parece ter sido bastante difundido: a propriedade coletiva, comunitária, de uma famí­lia ou de uma tribo. O fato foi atestado em Shuruppak, assim como em Lagash no tempo de Enannatum, cujo filho tinha adquirido uma destas propriedades familiares. Mesmo em Adab este regime teria existido, ainda que esta região se prestasse melhor a um regime de parcelamento das terras.

Mais tarde, sob o império de Acad, o regi­me comunitário parece ter prevalecido, assim como testemunha a Estela de Manishutusu, que relata a compra, feita por este soberano, de um domínio de 2.300 hectares, perto de Marad, per­tencente a uma tribo. Mas deviam existir ao mes­mo tempo propriedades individuais de pequena superfície.

Durante a III dinastia de Ur teve lugar uma Importante mudança: a volta ao sistema arcaico sumério da propriedade divina das terras. Mas mesmo aí os textos atestam a sobrevivência de propriedades privadas. Depois da queda de Ibbi­-Sin, o regime secular prevaleceu definitivamente.

Estas poucas indicações mostram uma mui­to lenta evolução para a privatização das terras.
É preciso distinguir duas categorias de camponeses: os trabalhadores sem terras e os agricultores. Os primeiros assalariavam os seus braços - e os de toda a família - por um salário muito baixo (havia excesso de mão-de-obra), na média 80 a 90 mulheres; 20 a 30 para os adolescentes, 10 para as crianças. Um funcionário" médio" ganhava en­tre 300 a 600 silas por mês.
[ A unidade monetária utilizada na Mesopotâmia era o gur (240 silas), que equivale a cerca de 220 litros. Mais tarde o uso da prata se generalizou, e a unidade, o siclo, valia de um a dois gurs de cevada conforme as épocas].

A situação de agricultor era mais invejável que a do trabalhador, sem ser excelente. Os en­cargos de arrendamento atingindo freqüentemen­te um terço, até mesmo a metade das colheitas, eram pesados, porque se correspondiam às do nosso arrendamento, o agricultor devia, ao con­trário do que se passa nos nossos dias, prover sozinho as despesas do pessoal (lavradores, cei­feiros, etc.) e comprar sozinho as sementes. E se o rendimento das terras era bom: 30 quintais de cevada por hectare, um boi custava 20 siclos de prata, um burro 15 a 20 siclos, uma charrua cinco siclos. Enfim, quando acontecia os agricultores necessitarem um empréstimo para equilibrar as suas contas, as taxas eram muito elevadas: entre 25 a 30% do valor emprestado.

Então abria-se um ciclo infernal que acaba­va por vezes muito mal: impossibilitado de pagar as suas dívidas, o agricultor vendia-se, ou vendia os seus filhos como escravos. Mas os agricultores mesopotâmicos con­seguiram fazer frutificar a terra para além de todas as expectativas.

HANDANI, A. Suméria - A primeira grande civilização. Rio de Janeiro: Otto Pierre, 1979.

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