Quadro Histórico e Cronológico da Mesopotâmia


A CRONOLOGIA

Abordamos aqui o problema mais delicado do estu­do da civilização de Assur e da Babilônia: o da data exata a ser atribuída aos acontecimentos de sua história. O cô­modo processo, adotado atualmente, de considerar a era cristã como um ponto de partida para a cronologia não po­dia evidentemente ser o dos Mesopotâmicos. Os anos não eram contados como os nossos, segundo uma era; nas épocas passadas, o ano era nomeado segundo um aconte­cimento marcante: "ano da entronização do rei"; "ano em que o rei cavou o canal X"; "ano em que o rei devastou tal país". Os escribas datavam até três anos depois do mesmo acontecimento, referindo-se, por exemplo, ao se­gundo como "o ano consecutivo àquele em que... etc.", ao terceiro como" o ano consecutivo a tal, ou a tal".

Na época assíria, o ano é denominado pelos Iimmu. Chamava-se assim a certos personagens constantes de uma lista fixa preparada para que cada um deles desse seu nome a um ano. O primeiro ano completo do reino tomava o nome do ano da entronização do rei, depois vinha o do grão-vizir, o do tartã (general-chefe), etc.; quando a série estava terminada, começava-se novamente.

Na época neobabilônica e na época persa, os "anos eram contados pelo ano do reinado do rei. Daí a dificulda­de que experimentamos em adotar uma cronologia certa para as épocas remotas em que os informes históricos são muito raros. Parece à primeira vista que não haveria uma dificuldade insuperável em reconstituir a cronologia adi­cionando a totalidade dos reinados.

Ora, se o leitor se reportar a diversas obras que tratam da civilização da Asia Ocidental antiga, constatará que muitas vezes as datas adotadas não concordam. Para o I milênio antes de nossa era, possuímos listas dos acon­tecimentos que, mantidos em dia de reinado a reinado, pouca margem deixam a erros importantes. As retificações, em geral, não abrangem senão alguns anos de diferença; para o período anterior, a incerteza é ainda maior; ela au­menta à medida que retrocedemos no passado.

Nossas fontes de informação são de dois tipos: 1.°) as listas dinásticas, algumas das quais vieram até nós; 2.°) os documentos que relatam "cortes transversais"· no tempo, tais como o número de anos decorridos de um acon­tecimento importante até outro.

Esses documentos devem ser consultados com pru­dência; deve-se advertir que, de modo geral, eles concor­dam imperfeitamente; dois textos, de acordo quanto a um evento, discordarão acerca de outro; além disso, segundo a classe a que pertencem (documento babilônico ou documento assírio), seguirão sistemas cronológicos que denotam divergências fundamentais.

As listas dinásticas oferecem os mesmos inconve­nientes; nenhuma delas atribui às dinastias o mesmo número de reis nem a cada rei o mesmo número de anos de reinado; mas a grande fonte de erros é que as dinastias são inscritas consecutivamente, quando na realidade algu­mas foram sincrônicas no todo ou em parte.

A mais completa lista era, até bem pouco tempo, a da coleção Weld-Blundell; ela foi também publicada por S. Langdom. Segundo uma tradição compartilhada pelas diversas regiões do antigo Oriente, ela distingue um pe­ríodo pré-diluviano durante o qual os reis reinavam por alguns milhares de anos, e um período pós-diluviano em que estão incluídos no curso das dinastias, confusamente, personagens tornados deuses mais tarde, mortais de uma longevidade impossível, para, pouco a pouco, chegar a ci­fras mais plausíveis e, finalmente, à realidade histórica.

A título de ilustração, eis três fragmentos da lista da tabuinha em forma de prisma da coleção Weld-Blundell; primeiro, os reis antediluvianos:

... A realeza foi estabelecida em Shuruppak. Em Shuruppak,Ubardudu foi rei e reinou 18:600 anos. Isto é, um rei que reinou 18.600 anos. Ao todo, para cinco cidades, oito reis que reinaram 241.200 anos.

O dilúvio veio a seguir. Quando veio o Dilúvio, a realeza tornou a descer do céu.
Depois do dilúvio, estamos em presença de dinas­tias que reentram nos quadros históricos, por exemplo. a I Dinastia de Ur:

A realeza passou a Ur.Em Ur, Mesannipadda reinou 80 anos. Meskem-Nanna (r), filho de Mesannipadda, tornou-se rei; reinou36 anos. Ao todo, quatro reis que reinaram 177 anos. Ur foi submetido pelas armas, e a realeza passou a Awan.

Essa dinastia, de que foram encontrados monumen­tos, permanece ainda vaga para o redator; pelas inscrições de Obeid. Sabemos que o sucessor de Mesannipadda foi Annipadda e não Meskem-Nanna(r), e o primeiro reinado é ainda de duração pouco verossímil (80 anos).Com a di­nastia de Agade (ou Akkad) atingimos uma base sólida:

A realeza passou a Agade. Agade, Sharrukin lubani, um jardineiro, libador de Ur IIbaba (ou IIbabu), o rei de Agade que construiu Agade, tornou-se rei. Reinou 56 anos. Rimush, filho de Sharrukin, reinou nove anos. Manishtusu, irmão de Rimush, filho de Sharrukin, reinou 15 anos. Naram-Sin, filho de Manishtusu, reinou 38 anos. Sharkalisharri, filho de Naram-Sin, reinou 24 anos, etc..

Período antidiluviano e dilúvio

Há muito os historiadores se têm esforçado para explicar esse período antediluviano, já citado pelo historiador Bérose;· a tabuinha da coleção Weld-Blundell atribui 241.200 anos de reinado aos oito reis que o preencheram. Para obter. resultados aceitáveis, os. estudiosos têm pro­curado com afinco interpretar o pensamento dos. velhos redatores; não se trataria de anos comuns, mas desema­nas, ou mesmo dias! Parece que o melhor é reconhecer que se trata de um período lendário, que não autoriza outra dedução a não ser esta: aos olhos dos Assírio-Babilôni­cos sua civilização remontava infinitamente mais longe no passado.

Resta a questão do Dilúvio, que separa implícita· mente as listas em dois períodos. Woolley,.em suas esca­vações de Ur, encontrou, na camada de civilizacão dita de Obeid, um depósito estéril devido a uma forte 'inundação. Watelin, em Kish. constatou a presença de um depósito análogo. Em Fara, a antiga Shuruppak. justamente a pátria daquele que escapou ao Dilúvio, Umnapishtim,a missão alemã de E. Schmidt (1931) reconheceu depois da camada II, que vai da superfície do solo a três metros de profun­didade e corresponde ao dinástico arcaico no mais profun­do. uma camada I que é da época de Jemdet-Nasr. Ora, nesse nível, entre quatro e cinco metros de profundidade, encontrava-se uma camada estéril de argila e de areia que poderia ser devida a um depósito de inundação. O depósito de Kish é situado nas camadas superiores; é menos antigo que o período de JemdetNasr e bem mais recente que o depósito de Ur; por outro lado. seria próximo do de Fara. Desde que séculos separam esses acontecimentos, não se trata mais de um "dilúvio", mas de inundações, como ocor­reu muitas vezeS outrora, quando os cursos do Tigre e do Eufrates jamais haviam sido regularizados. Certamente,a impressionante memória dessas catástrofes periódicas é que foi comemorada entre diversos povos no episódio de um dilúvio que teria destruído tudo.

Expliquemos, porém. porque o dilúvio de Kish é mais condizente com a tradição do que o de Ur. O de Kish, situado entre a civilização de Jemdet-Nasr e o início dos períodos que para nós são históricos, deixa lugar, para o início desse período, a poucos acontecimentos; ora, alista Weld-Blundell conta justamente duas dinastias entre o dilúvio e a I Dinastia de Ur que conhecemos. Durante esse período que vai da camada de Jemdet-Nasr à I Dinastia de Ur, temos o testemunho,. graças às escavações, de uma grande atividade na· Suméria; abundam vestígios de tem­plos e ex-votos. Mas, e esse é o ponto importante, as duas dinastias que precedem a I Dinastia de Ur não fazem ainda parte da História. A primeira (I de Kish) conta 23 reis para 24.510 anos; a segunda (I de Uruk) conta 12 reis para 2.310 anos. Não é senão com a I Dinastia de Ur (quatro reis para 177 anos) que chegamos a dados, evidentemente exagerados, mas já em nível de discussão. De fato, as esca· vações fizeram descobrir monumentos em nome de sobe· ranoª dessa dinastia. Com ela, estamos na História, numa data que se pode fixarem torno de 2700 antes de nossa era. O estabelecimento dessas datas, como das que se seguem, requer uma explicação.

Observações astronômicas

Pensou-se em utilizar as relações concernentes aos fenômenos astronômicos consignados no decorrer de alguns reinados. Foi assim que, pelos eclipses, pelos levan­tamentos helíacos de certas estrelas cujo aparecimento num dado reinado foi notado, obtiveram-se para tais acontecimentos certas· datas (retorno do fenômeno), algumas das quais podem ser afastadas de imediato como distantes demais da data geral em que se pode situar o aconteci­mento, ao passo que outras· podem ser retidas com certa probabilidade para serem objeto de uma escolha. A partir dessas datas, procurou-se preencher os vazios com os do­cumentos comparados e as listas dinásticas. Dessa manei­Ra, tomando como ponto de partida a I Dinastia babilônica para a qual o Padre Xavier Kugler havia estabelecido. uma data fixa, os historiadores reconstruíram toda a história anterior; aí porém, intervêm as duas fontes de erros que mencionamos: as dinastias não são mencionadas. com fre­qüência pelas listas, e também não são realmente todas sucessivas. As retificações na duração das dinastias e na de seus sincronismos estão sujeitas às concepções de
cada um e o resultado natural são fortes discordâncias. Para não citar senão um exemplo, suponha-se que os Guti tenham sucedido aos Agadianos; atualmente, admite-se que eles já haviam reinado sobre parte do país durante o fim da dinastia dos reis de Agade.

Por outro lado, quando o fenômeno astronômico con­siderado se reproduz a intervalos pouco distantes, pode não haver acordo quanto à data inicial adotada; isso aumen­ta correspondentemente a defasagem a seguir verificada, quando se procura preencher os claros.

Finalmente, a delicadeza dos cálculos astronômicos é tal que o Padre Kugler, tendo procurado verificar os seus, acaba chegando a uma segunda solução; e o astrônomo Fotheringham, tendo, por sua parte, refeito os cálculos, entra em desacordo com as cifras primitivas e revisadas do Padre Kugler.

Compreende-se sem dificuldade que atualmente a cronologia das épocas remotas não possa ser senão rela­tiva. A que fixava o início da História por volta de 4000 a.C. foi abandonada pelos assiriólogos que se inclinam, uns por uma cronologia curta .(início da História por volta de 3000), outros, atualmente, por uma cronologia extracurta que tem a seu favor argumentos de peso. Como se chegou a cronologa extra-curta?

Novas proposições

Os resultados adotados há alguns anos foram nova­mente questionados pela descoberta. Já antiga mas agora assegurada pelos textos de Mari, de que os reis Hamurabi, da Babilônia, e Shamshi-Adadl, da Assíria, que se acre­ditava separados por um lapso de tempo considerável, eram contemporâneos. Diversos proposições foram então. aven­tadas para harmonizar essas datas de acordo com os dados astronômicos; notadamente a de M. D. Sidersky, fixando para a I dinastia, 1950-1650, e para Hamurabi, 1848-1800.

Mas, depois disto, a grande lista real encontrada em Khorsabad pela missão norte-americana de 1932-1933 forneceu novos. elementos graças à série completa dos no­mes, salvo dois, dos 117 reis da Assíria desde o fim do III milênio até 608 a.C. As retificações propostas por A.
Poebel em 1942 e aceitas após estudo por Cavaignac, em 1946, chegam às seguintes datas:
Shamshi-Adad I: 1726-1694; Hamurabi: 1728-1685. O que conduz a uma diminuição geral para as datas que vão dos primórdios do III ao fim do II milênio, de cerca de 300 anos. Essa hipótese parece de início inaceitável e não obstante se enquadra melhor com o que se sabe por outras vias. Em 1931 eu já assinalava quanto era sur­preendente que antes da primeira metade do II milênio a Mesopotâmia quase nada tenha deixado do período do co­meçados Cassitas, não mais do que os Hititas que acaba­vam de fundar· seu· império. A situação era a mesma para o Elam; como explicar esse eclipse geral na Ásia Oci­dental? Eu pressentia a necessidade de um ajuste cronológico, mas em 1947 insistia na necessidade, para que fosse possível um rebaixamento de nossas datas, de que as da história do Egito, com as quais a Ásia anterior apresen­ta sincronismos verificados, fossem igualmente reduzidas.

Ora, em recente estudo J. P. Gilbert, assistente­-coordenador dos Museus do Cinqüentenário e professor de Arqueologia egípcia na Universidade de Bruxelas, sugere, após estudo comparativo de monumentos provenientes das Tumbas Reais de Ur e das primeiras dinastias egípcias, algumas aproximações que dariam com as novas datas ado­tadas para a Mesopotâmia:

Período de Jemdet-Nasr· (3100-2900) = Periodo tinita: 3100-2900;

Dinastias arcaicas I e II (2900-2700) = III e IV Dinastias; Dinastias de Ur e de Lagash (2700-2450) = V Dinastia: 2800-2425 aproximadamente;

Dinastia de Agade (início por volta de 2450) = V Dinastia: início por volta de 2425.

Aliás, essa proposição é ultrapassada pela de M. M. Alliot, que concluiu pelas seguintes datas: início do período tinita, 2850; da III dinastia, 2585; da IV dinastia, 2530; da V dinastia, 2395.

A possibilidade de ajustamentos da cronologia egípcia, até então quase intangível, afastaria as dificuldades e permaneceria de acordo comas numerosas constatações arqueológicas.


RESUMO HISTÓRICO

Períodos proto-histórico e dinástico arcaico

Por definição, esse período não pode ser esclarecido por nenhum documento escrito; cabe à arqueologia julgá-la por seu desenvolvimento, que vai da civilização da pedra a um estado evoluído em que os Mesopotâmicos, de posse do cobre, praticam a arquitetura e são capazes de produções artísticas. Durante esse período a escrita é inventada. Não falaremos senão sobre as constatações que expuse­mos anteriormente a respeito das divisões desse grande período.

O período dinástico arcaico se mostra em progres­sos mais acentuados em suas duas primeiras partes e já I libera monumentos com nomes. de soberanos dos quais Se dará a relação a seguir (Mesilim, por exemplo). Ele corresponde mais ou menos às. duas primeiras dinastias chamadas de "depois do dilúvio", admitindo ainda reis que figurarão nas listas divinas e cujos reinados de duração improvável indicam que os escribas não conservaram delas senão lembranças imprecisas.

Período de Ur e de Lagash

O mesmo não acontece com a terceira divisão do período, que podemos chamar de Ur e de Lagash. Quis o acaso que até aqui tivéssemos uma fonte histórica segura nos documentos que emanam dos reis epatési de Lagash, do início da História à Dinastia de Agade ou Akkad, sem interrupção, embora Lagash, apesar de sua riqueza, não seja senão um centro secundário, uma cidade que jamais foi capital ou sede de dinastia.

A terceira dinastia das listas é a primeira de Ur, fundada por Mesannipadda (2700 aprox.); em seu início não estamos ainda em terreno muito seguro. Pelo fato de um censor haver me advertido por eu não ter publicado a parte suméria de um recente relatório e nem sequer citado Mesannipadda (II), remeto o leitor às menções anteriores que eu fizera dele (12), indicando com isso que ele não me era de todo desconhecido (talvez mesmo num tempo em que M. M. L ainda não havia abordado a assiriologia). Não posso senão repetir o que dizia anteriormente. Nada sabe­mos com certeza a respeito. Em seu próprio cilindro-sinete encontrado no cemitério de Ur, Nin-Tur-Nin se diz mulher. de Mesannipadda. Uma marca de cilindro provinda do mes­mo cemitério qualifica Mesannipadda como rei de Kish, o que, sem dúvida, quer dizer: do universo (a leitura é boa, mas a legenda está semi-apagada). Uma tabuinha escolar da época neobabilônica relata que o templo construído por Mesannipadda "está hoje destruído, o inimigo o destro­çou". Será que se trata do templo de Obeid? Não pode­mos confiar nas listas reais que dão o nome de seu filho:

Mes-ki-un-nunna, Meski-um-Nanna(r), ao passo que na tabui­nha encontrada nas ruínas de Obeid é A-an·ni-padda, o construtor do templo, que se diz seu filho. Devido à instabilidade do personagem e pensando que em história tão resumida, destinada sobretudo aos estudantes, mais valiam fatos do que nomes, omiti Mesannipadda como teria omitido Glodion, se tivesse tido de escrever uma história do oeste da Europa num número de páginas igualmente limitado.

Eannadu de Lagash, filho de Ur-Nanshe, a quem de­vemos a Estela dos Abutres, gabando-se de haver conquis­tado Ur, é provavelmente o responsável pela queda de Sua primeira dinastia. Com isto, sabemos da sucessão regular dos dinastas de Lagash até a chegada dos Akkadianos. Todo esse período é ocupado pelos conflitos que opõem umas às outras as cidades da Suméria, particularmente Lagash e Susa. A Estela dos Abutres comemora a vitória que Lagash obteve sobre a cidade de Umma, sua vizinha, relativa a um palmeiral contestado. No tratado que comemora a estela, recorda-se·a delimitação feita outrora por Mesililil, rei de Kish, entre as duas cidades. Esse Mesilim, de quem o Louvre possui uma porção de armas· votivas, pertence a uma ou duas gerações anteriores. O neto de Eannadu, Entemena, infligiu nova derrota ao povo de Umma, que havia infringido as cláusulas do tratado.

Ao que parece, em seguida o poder passou, pouco a pouco, aos sumos sacerdotes da cidade. que acumulavam as exações. Urukagina suscita a revolta e reforma pro­fundamente a cidade. Para dizer a verdade, quando ele se vangloria de haver retirado os vigilantes de seus cargos e de não haver deixado um sequer em todo o território, nós nos perguntamos se ele terá estabelecido a liberdade ou a anarquia. Fato semelhante ocorreu no Egito no fim do antigo impétio; em Lagash, porém, a revolução for logo seguida de uma invasão estrangeira e Lugalzaggisi, patési de Umma, reinou no Lagash que ele havia pilhado, bem como nas cidades vizinhas, durante 25 anos.

Dinastia de Agade (ou Akkad)

Ao norte do país da Suméria se achava o país de Akkad, e na cidade de Agade, ainda não identificada, o filho adotivo de um jardineiro, libador em um templo:

Sargão, dito O Antigo, tornado rei da cidade. Sua conquista da cidade de Lagash não foi senão um sucesso entre tantos outros, pois a lenda se associou a seu nome. Ele conquistou o país da Suméria e chegou, diz-se, até Chipre, o que é quase certo, mas sem dúvida chegou à parte oriental de Anatólia. Uma epopéia chamada "Rei do Combate" descreve uma comissão de mercadores semitas que vêm en­contrar Sargão para lhe dar parte dos vexames de toda sorte que eles suportam no país asiânico onde estão instalados, além "das montanhas da prata" (o Taurus). Os generais, • certamente fartos de vitórias,. demovem Sargão de empreender essa expedição. Os mercadores insistem. Sargãoinvade Burshahanda, localidade das cercanias de Cesaréia (Capadócia), saqueia o país e volta satisfeito. O que faz suspeitar um fundo de verdade no relato é a presença, alguns séculos depois, nesse mesmo local, de Lima colônia semítica dedicada ao comércio. As conquistas de Sargão, na Mesopotâmia, não foram duradouras; as cidades se revoltaram contra ele, entre elas, a Babilônia, da qual essa é a primeira menção. Urumush e Manishtusu, que a ele sucedem, restabelecem a tranqüilidade, e Manishtusu tem até mesmo tempo suficiente para constituir domínios reais de grande extensão. O texto que nos instrui (a "Pirâ­mide de Manishtusu", no Louvre) insiste no fato de que os terrenos foram regularmente pagos ou permutados e de que cada um dos vendedores embolsou, além do preço combinado, uma pequena gratificação.

Naram-Sin se desdobrou para restaurar· a integrida­de do império, mas seus esforços não foram vãos; a Estela de Vitória do Museu do Louvre, que o representa vence­dor de seus inimigos, o atesta. Quando acredita seu triunfo durável, uma nova coalizão vem ameaçar o fim de seu reino. Nela se encontram incluídos os reis de tribos semí­ticas, Kish e Amurru, o que é menos explicável, a maioria dos futuros inimigos clássicos da Mesopotâmia, os reis dos Hititas, o de Kanesh (sem dúvida Cesaréia), e o de Amanus.

Os Guti - Gudéia

O fim da dinastia akkadiana foi sem brilho. Os Guti, montanheses do Zagros, invadiram pouco a pouco a planície, desde os derradeiros reis de Agade; os últimos anos são tão incertos no meio dessas incessantes incursões, que nas listas aparece a fórmula: "quem era rei, quem não era?".

Após uma dinastia de Uruk efêmera, os Gutise instalam na Mesopotâmia por. mais de um século. Sem cultura eses não deixam nada à sua passagem; lamentações reli: glosas deploram a calamidade que devastou o país. Pouco a pouco eles se cansaram de destruir e permitiram a alguns, no sul da Mesopotâmia, continuarem uma vida tran­qüila mediante pesado tributo.

Tal é, sem dúvida, o caso da cidade de Lagash, com seu patési Gudéia (século XXIII). O personagem é certamente vassalo, pois envia tributos alimentares "ao Rei e à Rainha", sem dúvida Guti. Nesse momento, é provável que todas as forças espirituais da Suméria se tenham concentrado em Lagash, ao passo que o fim daquela não devia mais tardar. Gudéia pôde consagrar-se às suas construções, nao fazendo a guerra senão para rechaçar um ataque do país de Anshan, contíguo ao Elam.

Utu-hegal. II Dinastia de Ur. Isin e Larsa

Uruk, que havia esperado, no fim dos Agadiânos, retardar ou repelir a invasão dos Guti; retoma enfim a ofen­siva e triunfa sobre os invasores. O fundador da nova dinastia, Utu-hegal, bate o rei dos Guti, Tirigan, toma-lhe seus tesouros e aprisiona sua família.

Ao fim de pouco tempo, a realeza é recebida por uma III Dinastia de Ur (2100-2000), digna continuadora da civilização do tempo de Gudéia. Ur"Nammu,o primeiro de seus reis, reergue as ruínas deixadas pelos· Guti, anexa toda a Suméria e invade o país de Akkad. Dungi (ou Shulgi) e seu sucessor; precisa incessantemente conter os mon­tanheses do leste que se tornam ameaçadores; para isso, se co.nverte num protetor de Susa, que anexa. Seu filho, Bur-Sm, prossegue a obra paterna e, além disso, conta entre seus vassalos Zariku, rei da Assíria, país que entra agora na História.

Shu-Sin (ou Gimjl-Sin), além dos combates contra inimigos tradicionais a leste, é obrigado a fortificar sua a nordeste, para se garantir contra os Amorritas. sua invasão pacífica já começou; os documentos da época citam grande quantidade de nomes amorritas ou de personagens a que se atribui essa origem. Ibi-Sin, o último rei da dinastia, vê levantar-se contra ele o país de Mari, no Médio Eufrates, e o eterno inimigo, o Elam - é derro­tado e feito prisioneiro.

Dois reinos se seguem ao de Ur, por volta de 1955: um tem sua sede em Isin, o outro em Larsa, ambos cidades da Baixa Mesopotâmia. O de Isiné fundado por lshbi-lrra, amorrita, isto é, semita; o de Larsa é devido a uma dinastia elamita; os dois associados, Semitas e Elamitas, partilham os despojos dos reis de Ur, porém cada um cobiça os do­mínios do outro. A dinastia de Larsa acaba obtendo a vassalidade da de Isin, por volta de 1730, mas por poucos anos.

I Dinastia da Babilônia

É durante esse tempo que Sumu-abum, o Amorrita, se proclama rei da Babilônia, fundando assim a I dinastia dessa cidade(1830-1530aprox.). Apesar da hostilidade de ILushuma, da Assíria, que lhe move uma batalha indecisa, Sumu-abum anexa sucessivamente Sippar e Kish. Durante o reinado de seus primeiros sucessores, a dinastia de Larsa aniquila a de Isin, justamente a tempo para que Hamurabi, da Babilônia (1728-1685), se aposse sucessiva­mente de Uruk e Isin. Rim-Sin, rei de Larsa, se refugia em Elam berco de sua dinastia. O rei Hamurabi o persegue alie' o ca'ptura (cerca de 1700). A partir desse momento, Hamurabi estende seu reino, mas progressivamente,não passando a uma nova conquista senão quando acredita ter assimilado as precedentes. Devota toda atenção à sua admi­nistração, escava canais, faz reinar a prosperidade, dota seu império de leis e de uma religião nacional, anexa à Babilônia o reino de Mari e inquieta a Assíria; pode-se pensar que, não tendo mais a Assíria poderes para susten­tar as colônias semíticas da Capadócia,um dos príncipes asiânicos (entre os quais esses comerciantes estavam es­tabelecidos), Anitta, rei de Kussar, funda o Império hitita que iria revelar-se adversário temível da Mesopotâmia. Se essa colônia semítica era a mesma que podemos assinalar nesse lugar desde o tempo de Sargão, o Antigo, nós o ignoramos, mas ela pode ser tomada como exemplo, quan­do se deseja estudar todas as modalidades de comércio no início do II milênio na Ásia Ocidental; todos os arquivos de diversas famílias de negociantes foram descobertos em Kul-Tepe, nos arredores da Capadócia.

Hititas, Cassitas e Mitanni

Para a dinastia, o perigo veio a um tempo do no­roeste e do leste. Os Hititas, talvez no momento da expul­são dos Assíriosda Capadócia; transpuseram o Taurus; mas uma outra causa é possível: a invasão indo-européia que, pelo Helesponto, desemboca na Ásia Menor, como mais tarde o farão os Gálatas, ou, ao longo do Cáucaso, na direção do planalto do Irã, impelindo as populações que se tornaram sedentárias. Os Hititas se apossam de Alep e da Babilônia, que abandonam depois de ter saqueado, e os Cassitas, vindos do Zagros, substituindo os Guti de outrora, depois de múltiplas incursões se apoderam por fim da Babilônia e fundam uma dinastia durável que a Mesopotâmia, mais culta, pouco a· pouco policiará. E assi­milará (1500-II68). É provável que 1500 indique a alforria dos Cassitas sobre a Babilônia, que eles ocupavam em parte no fim da dinastia babilônica. É o momento de um período de efervescência que, no início, via sem dúvida a migração do clã de Abraão, da cidade de Ur ao país de Canaã., e que agora vê o avanço dos Hicsos no Egito e a fundação, pelos Hurri asiânicos dirigidos por uma aristo­cracia indo-européia, do reino de Mitanni.

Uma das primeiras proezas desse novo reino é submetera Assíria de maneira metódica. Os Assírios ser­vem em seu exército; mas o reino do Mitanni não é viável; situado entre múltiplos competidores, os Assírios e os Babilônicos, os Hititas, é pouco a pouco absorvido e divi­dido entre seus adversários, já que as alianças que ele havia firmado com o Egito não puderam protegê-lo.

O fim do milênio é marcado por uma invasão chama­da dos Povos do Mar, composta de populações das ilhas e dos Balcãs. O império hitita está para sempre abolido quan­do de. sua passagem; o país de Canaã é devastado, mas os invasores são detidos por Ramsés III, às portas do Egito. A luta então se circunscreve aos dois grandes poderes que permanecem na Mesopotâmia: o assírio e o babilônico.

A Assíria

Depois de fortunas diversas e de lutas de fastidiosas peripécias, Assurnazirpal (884-860) faz figura de grande rei e Salmanasar III (859-824) realiza 32 campanhas militares em 35 anos de reinado. Mais ou menos um século depois dele, a dinastia dos Sargônidas,do norne de seu fundador Sargão II (721-705), vai proporcionar à Assíriao maior po­der que ela jamais conhecera.
Os Sargônidas

Sargão II, filho de Teklatfalasar III, desde o início de seu reinado toma a cidade de Samaria, capital do reino de Israel, cujos habitantes dispersa; reprime uma revolta da Babilônia e faz face a uma coalizão que agrupa os povos de Canaã e do Egito; esmaga-os em Qarqare se volta para o norte da Assíria, onde submete o reino de Urartu (lago de Van) e os Mushki, cujos príncipes haviam reto­mado a tradição do grande império hitita da Asia Menor. Sargão anexa o seu território até Halys, fazendo, ao mes­mo tempo, de Karkemish uma cidade assíria.

Quando Sargão morre assaSSinado, em 705,· Senaqueribe, seu filho, lhe sucede. É forçadoareprimir.as ha­bituais revoltas em cada início de reinado, entre outras,na Babilônia e Tiro. Ezequias, rei de Judá, deve pagar à Assíria um pesado tributo. Uma das campanhas de Senaqueribe, sem grande resultado, foi dirigida contra o Elamque ele atacou por mar tendo mandado descer sua frota, construí­da nas cidades do interior, pelos canais e pelos rios. Senaqueribe morre assassinado por um de seus filhos (681).

Asarhaddon (681-668), outro de seus filhos,empreen­de os· mesmos esforços. Para prevenir as incessantes re­voltas do oeste, fomentadas e sustentadas pelos faraós, ataca o Egito e toma Mênfisem 671; antes, porém, faz frente aos Medas e aos Citas. Segundo o erro habitual dos reis da Assíria, Asarhaddon havia deixado os príncipes locais egípcios no local, sob a vigilância de seus residentes.

Seus dois filhos são seus sucessores: Assurbani­pai (669-626) como rei da Assíria, o primogênito Shamash­shum-ukin como rei da Babilônia. A desigualdade da partilha foi por causa de inimizade entre os dois irmãos. Assur­banipal reprime a revolta do Egito que havia.explodido logo apos a partida de seu pai, prosseguindo até Tebas. Taharqu, o rei do Egito, se refugia no sul e a conquista permanecerá ainda sem futuro. Como Shamash-shum-ukin havia feito causa comum com o Elam, que se tinha revoltado, Assur­banipal o assedia na Babilônia, onde ele perece no incêndio da cidade (episódio de onde os Gregos tiraram a tragédia de Sardanapalo). A seguir é a vez do Elam, novamente devastado. O saque de Susa é total, como jamais se havia Visto; Os túmulos dos antigos reis são profanados e a cidade totalmente destruída. Quase no fim do reinado, foi preciso repelir uma. Incursão dos. Medas instalados no planalto do Irã, que vieram quase até os muros da Babilônia.

Os sucessores de Assurbanipal sucumbirão diante desses novos inimigos. Nabopolassar, governador da Babilônia, alia-se aos Medas. Nínive é destruída em 612. O último rei da Assíria, Sin-shar-ishkun(620-612), refugia-se em Harran. A hegemonia da Assíria passa à Babilônia.

Os neobabilônicos

A Ásia é então partilhada entre os Medas e os Babilônicos. O novo Império da Babilônia segue a mesma política que a Assíria; seus reis são forçados a reprimir as mesmas revoltas; Nabucodonosor II (604-561) toma por duas vezes Jerusalém, em 596 e 587, deportando os habitantes (o "cativeiro da Babilônia"), contém o Egito em suas fron­teiras, reduz Tiro e Sidon, fazendo da Babilônia uma cidade cujo esplendor maravilhou a antiguidade.

Os Persas Aquemênidas

Porém Ciro, rei de Anzan, sudoeste da Pérsia, se revolta contra os Medas; tendo substituído na Ásia Menor o poder destes pelo seu, volta-se para a Babilônia onde reinava o fraco Nabonido, que ele submete em 539; a ci­dade, ao que se diz, é tomada sem combate, no curso de uma grande festa, pois a traição de seu governador Gubaru abriu suas portas. A hegemonia no Oriente passava desta vez à Pérsia, cujos soberanos, os Aquemênidas, após terem conquistado a Ásia até a Índia, são contidos pela Grécia.

O que a Assíria anexada havia conhecido, quando Nínive, sua capital, foi substituída pela Babilônia, a Mesopotâmia experimenta por sua vez de maneira mais com­pleta. A Babilônia continua a ser nominalmente uma das capitais do império, mas as verdadeiras capitais ficam mais a leste em Susa, residência de inverno, e em Persepolls, capital de verão. Durante todo o tempo do império aquemênida, a Mesopotâmia não é senão uma satrapla do Im­pério, recebendo as ordens e não mais ordenando; ela participa das grandezas mas também dos reveses dos Aquemênidas em suas lutas contra a Grécia, as guerras medas. Para nós, essa luta assume importância particular pelo fato da Grécia, símbolo da civilização ocidental, nela ter estado envolvida; para o Oriente são enviadas expedições, como outrora a Mesopotâmia, e agora o império persa, tem o cos­tume de enviar aos confins de seus territórios para reprimir sedições e levantar tributos. As derrotas de Dario em Mara­tona (490), de Xerxes em Salamina (480) e em Plateia (479). Salvam a Grécia da dominação estrangeira mas não tem nenhuma influência sobre a estabilidade do império persa. A Grécia torna·se novamente a aliada de Artaxerxes II e sua frota o ajuda a combater as revoltas da Síria e do Egito, que é reconquistado sob Artaxerxes III (358-331).

Alexandre da Macedônia

Um novo adversário se apresenta, encorajado por essas derrotas que lhe haviam mostrado que a Pérsia não era invulnerável. E é assim que Alexandre, filho de Filipe, rei da Macedônia, com forças de inferioridade despropor­cional mas de .extrema mobilidade; não conhece senão êxitos quando ataca a Pérsia, em 334. Os Aquemênidas dispunham de multidões onde não havia senão a guarda real, os imortais, que teve uma verdadeira representação militar. Alexandre força a travessia do rio Granique; Dario III Codoman, o último rei de Aquemênida, oferece a batalha na planície de Issus, e é vencido (333). Alexandre, sabendo que a Grécia não interviria, neutraliza o corredor da Síria, atravessa o Tigre; Dario o esperava em Arbeles, perto de Nínive; ele é novamente vencido (331). Sucessi­vamente, a Mesopotâmia, a Susiana, a grande capital Persépolis, pouco defendidas ou indefesas, caem em poder de Alexandre. Os últimos partidários de Dario o assassinam. A Alexandre não resta senão reorganizar o império. No regresso à Babilônia, que ele julgava preferível por sua situação central como futura primeira capital, a morte in­terrompe os sonhos daquele que pela primeira vez havia colocado o Oriente, de civilização várias vezes milenar, em poder do jovem Ocidente.

Em resumo, pode-se distinguir na Mesopotâmia três zonas: ao sul, a Suméria com Eridu, Lagash, Umma, Nippur, etc.; ao centro, a futura Babilônia com Kish, Agade, depois Babilônia e Sippar, que formava inicialmente o país de Akkad; ao norte, a Assíria, cujas cidades serão Assur, Kalah, Nínive. Se historicamente o papel da Assíria está terminado em 612 e o da Babilônia em 538, a língua assírio­ babilônica persiste até nossa era sob os sucessores de Alexandre, e a civilização mesopotâmica impregnará por mais tempo ainda a de todo o Oriente.

CONTENEAU, G. A civilização de Assur e Babilônia. Rio de Janeiro: Otto Pierre, 1979.

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