A Vida dos Celtas - As Instituições Sociais


As instituições sociais dos Celtas têm o maior interesse, tanto por fornecer um espelho da vida da Europa Transalpina pré-roma­nizada como pelas suas ligações mais largas, recuando até àquela herança social e lingüística, que havia de sobreviver, sob várias formas, entre os mais importantes povos indo-europeus. No pri­meiro capítulo expusemos as condições arqueológicas, mas aqui podemos dizer, com base na filologia comparada e na jurisprudência, que os Celtas possuíam tanto uma língua como um sistema institu­cional que mostram não terem passado de um membro de uma família muito dispersa. No Norte da Índia a herança ariana, preservada até à actualidade entre uma grande massa de ensino oral, revela estreitas afinidades. A sociedade grega dos tempos de Homero mostra-nos paralelos e em Itália os povos de língua italiana revelam talvez as mais estreitas ligações com os Celtas até ao estabelecimento das instituições urbanas etruscas e, depois delas, das romanas. As tradições celtas arianas sobreviveram sob forma fortemente incontarninada, por terem ido formar-se em regiões dos limites periféricos do Mundo Antigo, e escapado assim aos períodos consecutivos de agitação e de renovação que se verificaram no Centro.

Perante estas considerações não é natural que o direito consue­tudinário irlandês (nos seus elementos mais antigos) possa divergir extremamente do observado pelos Celtas do continente, de quem deve ter partido, e também neste caso podemos buscar confir­mação para uns tantos pontos nas fontes clássicas.

Instituições Sociais na Irlanda

Na Irlanda a comunidade achava-se incorporada no túath, palavra que originalmente queria dizer «o povo», mas que, entre­tanto, adquirira um sentido territorial. O túath era muito reduzido em pessoas e área, e normalmente confinado numa região com limites topográficos naturais. A estrutura social dentro do túath era tripartida: rei, nobres e plebeus livres. O rei era eleito de entre o ramo da família do seu predecessor, mas não era neces­sàriamente um dos filhos. A família real pertencia à casta nobre, que era a dos guerreiros, mas, nos tempos pagãos, a classe dos magos sábios, druidas, adivinhos e outros que tais ocupava a mais alta posição social, embora não constituísse uma classe hereditária. Os plebeus livres eram, principalmente, agricultores, mas a casta incluía também certas classes de artesãos. Note-se bem que, nos tempos pagãos, as funções rituais do rei tinham tão grande importância como as executivas no Conselho ou no campo de batalha. Também é importante o facto de o sistema de tribo constituir uma entidade social e ritual dentro da qual todos eram de condição livre (saor) e de qualidade sagrada ou ritual (nemed). Havia também uma população não livre, sem posi­ção social nem pretensões de propriedade, formada pelas comuni­dades subjugadas existentes, como escravos e famílias degradadas.

Dentro do túath, a unidade social efectiva era a família ou agregado familiar (fine), mas, para fins de herança e para a maior parte das formas de obrigação, reconhecia-se um parentesco mais próximo aos descendentes por via varonil de um bisavô comum. Neste sentido mais restrito ( derbfine), o parentesco estendia-se, portanto, aos primos da segunda geração da linha masculina. Neste sistema de parentesco a família era muito unida: um chefe de família com a sua mulher, ou mulheres, e filhos, incluindo os filhos já crescidos com as suas mulheres e descen­dência. Parece que os casamentos eram arranjados fora da família e talvez na classe nobre, fora do túath.

A propriedade da terra não cabia a um indivíduo, nem mesmo ao chefe da família, mas à família, da qual não podia ser alienada. Esclareça-se desde já não haver quaisquer provas de que, entre os Celtas, o rei dispusesse de terras para conceder em agradecimento por serviços armados, nem, por outro lado, da existência de terras comuns ou pertencentes a povoações. Nenhum destes sistemas se apropriaria às condições da Europa pré-histórica, embora, recentemente, tenha havido quem defendesse tratar-se de duas formas arcaicas de propriedade do solo indo-europeias. Esta opinião baseia-se em provas documentais hititas e gregas de Micenas, mas, em ambos os casos, os grandes senhores indo­-europeus achavam-se já adaptados a uma forma de civilização urbana e a um verniz social totalmente diferentes dos seus modos rústicos ancestrais, que teriam conservado, porém, entre outros povos, os Celtas e os Arianos.

De modo algum podem considerar-se como estados estes pequenos reinos, formados por um único túath. Não havia qualquer administração pública nem imposição da lei, e a responsabilidade das indenizações, nos termos da lei, cabia ao agregado familiar das partes em litígio. Na verdade a família era responsável pela manutenção de todos os seus direitos e pela obtenção de acordos.

O homem livre, qualquer que fosse a sua ·condição, tinha um preço de honra (lóg n-enech), que representava uma contribuição da sua dignidade («cara», ou peso que representava na comuni­dade), e função directa da sua riqueza material. Deste modo um homem próspero podia ascender consideravelmente em posição social, mas o preço de honra variaria de acordo com a fortuna que tivesse, o que era uma questão importante, pois as indenizações por agravos eram atribuídas directamente de acordo com ele. Além dos laços e deveres de parentesco, havia também a insti­tuição da clientela (célsine). Na sua forma mais simples incluía prestação de serviços armados, e outros, pelo céle, normalmente um plebeu, ao seu senhor (flaith). Em troca o céle recebia proteção e apoio material sem, todavia, perder nada da sua posição inde­pendente, nem do direito à propriedade de gado, ou interesses em terras. A clientela, que tão complicada viria a tornar-se mais tarde, nem por isso deverá confundir-se nunca com o feuda­lismo.

Outro aspecto importante da participação individual na ordem social era a fiança, de que havia várias formas. Em geral, ao tomar a si uma fiança, um homem garantia, com a sua própria pessoa, a sua propriedade ou o seu poder de supervisão, a satisfação dos compromissos de alguém. O preço de honra do fiador entrava em linha de conta, pois ele podia sofrer a sua redução, ou até privação, se o seu protegido faltasse. É provável que pelo menos um dos géneros de fiança representasse uma forma evoluída do acto de tomar e dar reféns, e estes últimos, é claro, também contri­buíram com a sua parte para o direito irlandês, mais especialmente em relação com as fianças prestadas a um rei.

Em princípio, os direitos e posição de um indivíduo existiam unicamente dentro do seu próprio túath, e fora dele achava-se à mercê das circunstâncias. Teria sido esta, de qualquer modo, a situação em condições primitivas.

Claramente se depreende que a manutenção do direito consue­tudinário não se devia ao poder de qualquer autoridade central, assentando de facto na sua própria venerabilidade, poder ritual e aceitação popular. A ameaça de sanções, com a perda ou redução da posição social, constituía um factor primordial para lhe aumentar a eficácia.

O conhecimento do direito consuetudinário competia ao sector erudito da sociedade. Originalmente, talvez indistinta de cargos mágico-religiosos e outros, esteve a conservação da lei nas mãos de especialistas por certo tempo, antes de ter sido passada a escrito lá para o século VIII, talvez mesmo VII. O brithem, o jurista; não era um juíz no sentido moderno. Era um expositor da lei, e podia como tal assistir ao rei na pronúncia de sentenças, ou podia actuar como árbitro em disputas entre famílias, e até entre reis. O jurista era educado numa escola de direito, onde metia cuida­dosamente na cabeça uma enorme massa de sabedoria tradicional; deste género de ensino voltaremos a falar no próximo capítulo.

As escolas de direito tendiam a diferir de região para região em aspectos secundários do ensino, mas os juristas, tal como outras pessoas da sua categoria social e sacra, tinham liberdade de viajar à vontade pelo país, e deste modo se processava um intercâmbio freqüente de conhecimentos profissionais, com a conseqüente preservação geral da linguagem erudita arcaica, em que as leis eram recitadas. O ajustamento do direito consuetudi­nário às condições modificadas parece ter competido aos poderes interpretativos dos juristas, mas também o rei estabelecia algumas alterações locais na assembléia (óenach) de todo o túath. Todos os anos se reuniam assembléias em certos festivais, e noutras oca­siões se se mostrasse necessário. Além da sua função legal, desem­penhavam importantes funções rituais e económicas, e eram man­tidos, se não na residência do rei, num local sagrado que se associava frequentemente ao local de enterramento da dinastia.

As prerrogativas do rei na assembléia permitiam-lhe impor vários géneros de acções públicas, ou empreendimentos, tais como mobilizar uma hoste para a guerra ou negociar um pacto de amizade com outro túath. O estabelecimento de relações amigáveis entre dois túaths podia caber a dois reis de igual força, mas mais frequen­temente relacionava-se com ampliações de soberania. Deste modo um rei poderoso podia tornar-se senhor sobre 'outros mais fracos, e estes arranjos eram essencialmente os mesmos que numa clientela entre indivíduos; o rei menor, empenhando o seu túath, com reféns e tributo, em troca de uma maior segurança militar.

Vê-se bem como se criaram, deste modo, maiores combinações políticas, formando-se, como aconteceu na Irlanda, consideráveis reinos regionais, mas este fenómeno também está bem ilustrado na Gália, pelo que vamos dirigir a atenção para os testemunhos emanados do continente.

As Instituições Sociais na Gália

A única divergência considerável entre o sistema social irlandês e o dos celtas continentais, revelado em parte pelos autores clás­sicos, está na questão da realeza. É bem conhecido que, no tempo de César, algumas das principais tribos gaulesas eram gover­nadas pela aristocracia, com um ou mais magistrados chefes (vergobret), nomeados para o cargo. A razão da supressão da realeza entre estas tribos foi atribuída por César a um aumento tão grande, e abuso, do sistema de clientelas, que muitas facções da aristocracia adquiriram uma força tão grande que abandonaram as suas suseranias mais altas.

É interessante que todas estas tribos sem rei parecem ter-se situado dentro da Céltica, a maior divisão da Gália na descrição de César. Mais uma vez se nota, talvez, o facto significativo de que as principais destas tribos, os Arvernos, Éduos e Helvécios (Arverni, Aedui e Helvetii), ficavam todas na zona mais aberta às influências da Provincia Narbonensis, que se encontrava sob o domínio romano desde fins do século lI. Foi, provavelmente, devido à emulação dos costumes romanos, assim como à desagre­gação interna provoca da pelos avanços romanos vindos do Sul e pelas incursões bárbaras vindas do Norte, que estas tribos deixa­ram os reis pelos magistrados. Nas outras duas divisões da Gália, na Aquitânia, onde a plebe era fortemente aparentada com os Íberos, e na Bélgica, onde as tribos tinham origens transrenanas, os reis conservaram a sua influência. Mesmo dentro da Céltica houve reis que reinaram sobre outros, como no caso de Cavarino, que reinou sobre os Sénones; mas esta tribo estendia-se ao longo de norte da fronteira com a Bélgica, e distante da província romana.

Toda a massa de provas dos autores antigos, bem como a filologia de muitos nomes pessoais celtas, mostra ser a realeza tão antiga como normal entre os Celtas do continente.

Houve na Gália outro factor actuante, vindo desde o século II a.c., e que, em tempos um pouco anteriores, pode ter feito muito para alterar as instituições célticas do Norte de Itália. Foi o crescimento de conglomerados de habitações dispostas para defesa, que mal podem chamar-se vilas ou cidades, mas que marcam um verdadeiro salto no carácter rural essencialmente disperso da socie­dade celta arcaica. Em Itália tinha havido o exemplo das cidades etruscas, mas na Gália Transalpina, embora há muito existissem pequenos fortes tribais, a concentração permanente de um grande número de pessoas foi um fenómeno do final do século II a. c., provocado parcialmente pela incursão dos Cimbros e Teutões, mas, principalmente, como reflexo do desenvolvimento da vida urbana ao longo do litoral mediterrânico e,- de uma maneira geral, dentro da província romana. Este desenvolvimento não podia deixar de ter consequências para a vida tribal, e pressupõe certa­mente uma diminuição da importância ritual da antiga realeza rural.

Em comparação com o túath irlandês, as áreas tribais na Gália, como anteriormente no Norte de Itália, parece terem sido muito grandes. No caso das tribos gaulesas, cujas fronteiras sobreviveram largamente nas áreas administrativas romanas correspon­dentes até às dioceses da França medieval, é claro que os grandes nomes representam senhorios abarcando muitos grupos popula­cionais menores.

É esta a implicação evidente da afirmação de Estrabão de haver 60 nomes de tribos inscritas num altar dedicado a César Augusto em Lugudunum (Lião), lugar de que as tribos gaulesas faziam seu centro. Para ter sido um centro comum deve ter disposto de acessibilidade, necessitando mesmo, sob a administração romana, de não mais de um ou dois dias de viagem para isso. Por outro lado, a. unidade política entre os Celtas continentais deve ter sido, normalmente, bastante maior do que na Irlanda e na Grã-Bretanha, onde a pequenez e diversidade das diferentes regiões naturais e a limitação do oceano impunham um grau de fixação superior àquele que jamais poderia verificar-se nas suas antigas terras, antes do desenvolvimento das cidades. Parece, igualmente, provável que se tenham mesmo verificado certas oscilações entre a grande e a pequena organização tribal em dife­rentes circunstâncias. As comunidades agrícolas, estabelecidas durante a expansão da cultura dos campos de urnas dos tempos da Idade do Bronze recente, seriam numerosas e fechadas sobre si mesmas. O facto também é aparente no caso dos povoadores da Idade do Ferro A da Grã-Bretanha. A subida ao poder das móveis e aguerridas dinastias de Hallstatt e de La Tene pode levar a pensar em domínios mais vastos, mas é natural contar que se lhes seguisse a fragmentação, após as primeiras conquistas, principal­mente devido às sucessivas divisões por heranças. Em tempos de crise são de esperar reagrupamentos mais vastos e imigração, como para a Itália e para os Balcãs. Sob estas últimas condições, bandos heterogéneos teriam aderido a alguns chefes de grande nomeada, mas não é natural que populações tribais inteiras tives­sem jamais abandonado completamente o seu território originário. Podemos invocar em apoio desta asserção os Bóios, que tomaram parte no povoamento do Norte de Itália, mas' que também se conservaram na Boémia e que mais tarde haviam de procurar refúgio na Gália, no tempo de César. Os Volcas eram vizinhos dos Bóios na Europa Central, e podemos presumir com segurança que os Volcas Tectósagos da Gália do Sul e da Ásia Menor seriam ramos do seu tronco. Há outros casos em que a geografia antiga não nos auxilia, apontando-nos o centro inicial da dispersão tribal, de que se conhecem somente ramos periféricos. Podem citar-se exemplos entre os Sénonesdo Norte de Itália e, no Norte da Gália Central, os Suésios, cujo nome aparece tanto no Centro de Espanha como na Gália belga, embora César refira colonos desta última zona enviados para a Grã-Bretanha. Conhece-se o nome tribal dos Bitúriges com duas aplicações muito diferentes. Nos tempos de César esta tribo achava-se localizada ao sul do Loire e numa pequena área a oeste da Gironda. Uma lenda reproduzida por Tito Lívio fala-nos de um poderoso rei desta tribo, Ambigato, cujos sobrinhos comandavam forças que entraram em Itália. e nas regiões do Danúbio Superior e do Reno. Nesta história entra, provavelmente, uma certa memória das emigrações do século V a. C., partidas de uma área ao norte dos Alpes Centrais. A posição periférica ocidental de um ramo da tribo, por alturas do século I a. C., indica terem sido impelidos para oeste, o mais provavelmente pela tomada pelos Belgas do Champagne, esse importante centro da cultura de La Têne antiga. Mais plenamente apanhados pela luz da história acham-se os Catuvelaunos, povoadores belgas da Grã-Bretanha, provavelmente no primeiro quartel do século I a. C. A sua tribo-mãe tinha-se tornado cliente dos Remos no tempo da conquista dos Belgas pelos Romanos, e os Catuvelaunos só são mencionados pelo nome pela primeira vez com Amiano Marcelino, no século IV.

Voltando às questões da estrutura política e social entre os Celtas do continente, parece encontrar-se um exemplo das obriga­ções de suserania e clientela tribal na sequência dos acontecimentos relativos ao desentendimento dos poderosos Arvernos com os Romanos; um acontecimento que ia precipitar a anexação da Gália Transalpina.

No ano 124 a. C. um exército romano derrotou os Sálios, tribo celta (pelo menos em parte) que estava em hostilidades com Massília. 30 anos antes a cidade grega obtivera o auxílio
armado de Roma para bater tribos lígures que tinham interferido no seu comércio. Quando os Sálios foram derrotados, foi estabe­lecido um forte romano em Aquae Sextiac (Aix-en-Provence), mas nenhuma outra tribo fez qualquer novo assalto. Os Romanos exigiram então a entrega dos Sálios fugitivos, que tinham ido procurar asilo entre os Alóbroges, entrega que estes recusaram. Daí resultou os Alóbroges serem atacados e derrotados, mas neste caso, diferentemente do que se dera com os Sálios, os Arvernos atacaram em represália. A causa, se recordarmos os êxitos militares ininterruptos dos Romanos, deve ter sido algo mais forte do que a mera " esperança de eliminar uma ameaça. Deve ter entrado na decisão o dever de suserania da protecção, de cujo cumprimento dependeria a manutenção da lealdade de todas as outras tribos sobre as quais os Arvernos mantinham ascendência. A polí­tica intertribal, descrita por César na Guerra da Gália, mostra-se cheia dos laços entre suseranos e povos tributários, e a garantia de acordos com reféns, um dos elementos básicos na clientela tribal.

Dentro da unidade tribal, o primeiro a atestar a clientela pessoal entre os Celtas do continente é Políbio, que descreve as vantagens para um gaulês nobre dos numerosos grupos de depen­dentes e clientes. César notou, igualmente, as vantagens mútuas da clientela para protector e protegido. O sistema revela um claro paralelo com o já descrito para a Irlanda. Revela-o, igualmente, a sociedade gaulesa, que César reconhece dividida em três classes: druides, equites e plebs. Talvez tenha exagerado as condições de vida degradantes dos plebs gauleses, mas é claro que estes não tiveram a menor intervenção no género de actividades a que César se dedicava. A verdade é que a marcha dos acontecimentos na Gália, desde o século II a. c., em que está incluído o declínio da sociedade rural, deve ter contribuído largamente para fazer baixar a condição social dos plebeus livres; isto, porém, tem de ficar no campo das hipóteses.

Outro paralelo interessante com os costumes irlandeses reve­la-se na afirmação de César de que as pessoas que não cumpriam as decisões judiciais eram excluídas dos sacrifícios e perdiam a honra e o direito à sociedade normal. Pode ver-se a aplicação dos termos irlandeses nemed e soar atrás mencionados. Quanto a uma nota de César de na Gália os filhos não poderem aparecer em público na companhia dos pais antes de chegarem à idade de pegar em armas, talvez a melhor interpretação seja que, como na Irlanda, os filhos eram dados a criar a outras pessoas. Na Irlanda seriam, normalmente, entregues em tenra idade a uma família de maior categoria, e não voltavam à casa paterna antes de atingirem a maioridade, aos 17 anos. As raparigas também eram mandadas para pais adoptivos e voltavam para casa aos 14 anos, «a idade da escolha», em que eram combinados os seus esponsais. A instrução nas artes domésticas e outras, correspondente à sua classe, era da responsabilidade dos pais adoptivos, que, como no caso dos rapazes, recebiam paga pelos cuidados e instrução.

Há dúvidas sobre a exactidão da descrição de César das cláu­sulas dotais, especialmente no que se refere ao seu destino por morte de uma das partes. As provas emanadas da Irlanda indicam uma situação básica de compra e venda da mulher, mas com o desenvolvimento de um sistema dotal em que a mulher devia entrar com bens até uma fracção determinada dos do marido. Este, na Irlanda como na Gália, podia ter certo número de mulhe­res, mas a Irlanda dá-nos provas de haver uma esposa, principal ( cétmuinter), cabendo às outras várias classificações subordinadas.

Quanto ao poder absoluto do chefe da família sobre as mulheres e filhos, as provas da Gália e da Irlanda são concordantes, e ilustram o princípio indo-europeu da autoridade patriarcal. Podemos talvez arriscar ainda aqui algumas considerações sobre a posição social da mulher e a sua capacidade para dispor de propriedade. Supõe-se geralmente que o direito de uma esposa à posse de propriedade pessoal, ou o de uma filha a herdar, são de evolução recente, aparecida sob formas paralelas nos diferentes sistemas legais indo-europeus. Por outro lado, uma prática mais liberal, mas ainda comum, parece ter-se mantido em efeito, em épocas muito
variadas, nos costumes legais ariano, romano e celta. Há também a questão dos riquíssimos túmulos de mulheres celtas, como os de Vix e Reinheim, para só referir dois exemplos descobertos há pouco tempo. Neles foram concedidas a mulheres, enterradas individualmente, as mais esplêndidas câmaras funerárias e os adornos e acessórios mais sumptuosos. O prestígio pessoal e o direito à posse de propriedade podem explicar esses casos, embora o con­junto de todas estas considerações pareça indicar que tal inca­pacidade das mulheres não era mais do que um reflexo das condições primitivas, que imperavam nos tempos de emigração, ou de dificuldades, embora o sistema legal tivesse sido sempre suficientemente elástico, aqui e ali, em períodos de prosperidade, para permitir uma maior liberdade feminina na vida pública e familiar.

POWELL, T. Os Celtas. Lisboa: Verbo, 1972.

Nenhum comentário: